Na bacia hidrográfica do Atlântico Sul, quatro rios que atravessam o leste do território gaúcho — Caí, Gravataí, Jacuí e Sinos — desaguam no Lago Guaíba. Em 1941, ele protagonizou uma enchente histórica, com o nível das águas chegando a 4,76 metros. Os moradores mais antigos de Porto Alegre ainda lembram daqueles 22 dias em que a água deixou o primeiro metro do Mercado Público submerso. A cidade virou rio, como descreveu o gaúcho Mario Quintana no poema Reminiscências. Oito décadas depois, a história se repete, infelizmente de forma ainda mais dramática. No dia 5 de maio, o Guaíba atingiu a marca recorde de 5,35 metros e agravou o caos que se desenhava desde os últimos dias de abril, quando tempestades passaram a castigar não só a região metropolitana, mas a maior parte do Rio Grande do Sul. As imagens de água e lama tomando casas, comércios, prédios, espaços públicos, plantações, ruas, estradas e até um aeroporto se espalharam e deram contornos à maior catástrofe ambiental da história gaúcha.
Os números da tragédia são todos superlativos. Só nos primeiros dias de maio, Porto Alegre recebeu quase o triplo da média histórica de chuva prevista para o mês, de 111 milímetros. Em Bento Gonçalves e Caxias do Sul, a precipitação passou dos 600 milímetros. O rastro de destruição deixou 107 mortos, 374 feridos e fez 232 125 pessoas deixarem suas casas (veja o quadro). Mais de 120 trechos de 68 rodovias foram bloqueados por conta de pistas completamente destruídas e pontes que sucumbiram à força das águas ou da lama. Dezenas de cidades ficaram totalmente isoladas — 85% dos municípios foram afetados de alguma forma. O município de Eldorado do Sul está sendo completamente evacuado. Meio milhão de pessoas ficaram sem energia elétrica. As rodoviárias de algumas cidades foram interditadas, e o aeroporto Salgado Filho, na capital, um dos mais movimentados do país, tomado de água e barro, fechou sem previsão de reabrir. A população precisou racionar água — das seis estações que abastecem a região metropolitana, cinco chegaram a ficar fora de operação. A de Ilhas, perto do ponto nevrálgico das enchentes, teve a sua estrutura arrastada pelas chuvas.
As imagens do sofrimento das pessoas no Rio Grande do Sul rodaram o mundo. Um contingente de milhares de homens se mobilizou para resgatar ou apoiar as vítimas, parte deles deslocados pelo estado — como as Forças Armadas e as Defesas Civis — e parte pela ampla rede de solidariedade que se formou, até com a participação de gente de fora do estado, reunindo jipeiros e donos de barcos, jet-skis e caminhões. Doações de alimentos e remédios passaram a chegar de toda parte. Houve cenas dramáticas de pessoas resgatadas do meio do “mar” que se formou nas cidades. Também houve pacientes, muitos em situação grave, sendo removidos de helicópteros a locais em melhores condições. Hospitais de campanha, como em uma guerra, foram montados em pontos estratégicos — um deles, com capacidade para quarenta leitos, em um navio deslocado pela Marinha. Com as cidades isoladas e o abastecimento em risco, pessoas correram aos supermercados e postos de combustíveis, em cenas dignas de filmes de apocalipse. Aproveitadores de todo tipo agravaram o drama, com saques, roubos e furtos se espalhando em áreas alagadas, a ponto de o estado pedir reforço da Força Nacional de Segurança. Moradores extenuados pela luta contra as águas se recusavam a deixar as casas por medo de que seus pertences fossem levados, em uma vigília angustiante em meio ao caos.
Além do drama humano, as águas deixaram para trás um vasto prejuízo financeiro. A Confederação Nacional dos Municípios estima perdas de 6 bilhões de reais, sendo 3,4 bilhões em moradias e 1,4 bilhão em Infraestrutura. “Quase 90% do PIB do comércio e da prestação de serviços foi afetado de alguma forma”, estima Luiz Carlos Bohn, presidente da Fecomércio-RS. As produções de hortifrúti, leite e suínos são as que mais preocupam o setor agrícola. O presidente da Federação da Agricultura do estado, Gedeão Silveira Pereira, classifica como “severo” o comprometimento da logística. “Compromete o escoamento dos carros-chefes da produção: arroz e soja”, diz. Mesmo que o estado receba a ajuda financeira necessária, vai demorar algo entre três e cinco anos para a economia voltar a se recuperar.
O drama está longe do fim. A água baixa em ritmo lento, mas a meteorologia anuncia mais chuvas nos próximos dias. O desastre do Rio Grande do Sul já se insere no rol das maiores catástrofes climáticas do país, como as de Caraguatatuba (1967), Região Serrana do Rio (2011), Petrópolis (2022) e Litoral Norte paulista (2023). As tragédias ensinam, da pior forma possível, que não é possível mais subestimar as mudanças climáticas nem adiar a preparação da sociedade e das cidades para mitigar os seus impactos. Que as autoridades do país aprendam de uma vez por todas essa lição.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892