Com 67 000 metros quadrados, o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia tem cinco pavilhões nos quais se empilham 5 300 prisioneiros. Em cada cubículo superlotado, onde caberiam cinco homens, estão quinze. João Teixeira de Faria, de 77 anos, conhecido como João de Deus, não vive nesse aperto infernal. Está recluso na chamada “sala de estado-maior”, dentro do setor de custódia, afastado dos presos comuns. É assim por razões de segurança: os casos de estupro e abuso sexual de que o prisioneiro célebre é acusado ganharam ampla divulgação, e havia o receio de que, na carceragem comum, ele caísse vítima da tácita lei da bandidagem que cobra violência sexual com violência sexual. Não existe previsão para que aquele que já foi o mais reputado médium do Brasil deixe a cadeia. Sua situação com a Justiça fica cada vez mais complicada.
Na semana passada, ele virou réu pelos crimes de violação sexual e estupro de vulnerável e teve bloqueados 50 milhões de reais de seu patrimônio, entre imóveis e investimentos bancários. A ideia é garantir que esse montante, em caso de condenação, seja usado para ressarcir as vítimas. Em seu espaço de 50 metros quadrados, o líder religioso convive com outros três detentos, todos advogados. O local é uma antiga enfermaria, convertida em cárcere para prisioneiros que correm risco entre os demais criminosos. Não há grades nas janelas, e os quatro presos contam com mimos raros em penitenciárias: uma televisão de 20 polegadas, um banheiro com chuveiro elétrico e, luxo dos luxos, uma privada de louça. O médium toma banho de sol por duas horas, todas as tardes, em um pequeno jardim nas imediações do dormitório. Ele se queixa aos colegas e carcereiros de não ter tido a chance de ver a esposa, Ana Keyla, pois a Justiça proibiu a visita de parentes nos trinta primeiros dias de custódia — João foi preso em 16 de dezembro.
Um dos advogados da equipe de defesa vai visitá-lo quase diariamente. Pelo parlatório, João de Deus costuma chorar e reclamar de seu estado de saúde. Diz ser “desumano” o confinamento de um senhor com problemas cardíacos (tem cinco stents no coração) e com 60% do estômago extraído em 2015, por causa de um câncer. No começo de janeiro, João assustou-se com manchas de sangue no pênis. Foi conduzido, de ambulância, a um hospital para exames. Era uma infecção urinária. O paciente foi tratado com antibióticos antes de retornar ao sistema prisional.
Na quarta-feira, João de Deus prestou depoimento durante uma hora e meia em Goiânia, com a presença de dois advogados. Foi interrogado a respeito das quatro armas sem registro que mantinha em casa — entre elas um revólver .32 e uma garrucha .22. Ele recorreu a seu ofício de conselheiro espiritual para explicar a origem dos artefatos. O objetivo seria ajudar almas aflitas: uma arma foi tomada de uma pessoa em depressão que ameaçava suicidar-se e outra, de um marido enfurecido que descobrira o adultério da mulher e poderia matá-la. João de Deus alegou que, ao se apossar do armamento, apenas tentava evitar o pior. A terceira arma foi recebida como pagamento de um amigo a quem emprestou dinheiro. Não se lembrou da origem da quarta arma.
O Ministério Público agora vai investigar o que pode ser outro capítulo tenebroso de uma história já assustadora. A ativista Sabrina Bittencourt (que ajudou Dalva Teixeira, filha de João de Deus, a denunciar os abusos que sofreu do pai desde os 10 anos) e Maria do Carmo Santos, presidente da entidade Vítimas Unidas, que apoia mulheres com histórico de abuso sexual, afirmam ter recebido denúncias de que uma quadrilha de tráfico internacional de crianças funcionava sob a proteção do médium. Uma estrangeira que adotou um bebê com a ajuda de João de Deus falou sobre o esquema depois de tomar conhecimento dos casos de abuso — mas pediu anonimato porque não quer perder o filho. O preço de cada criança ficaria entre 20 000 e 50 000 dólares. O site Abadiania Web Portal trazia mensagens, em inglês, em que se perguntava por mulheres desejosas de dar seus filhos para adoção — não se trata, no entanto, de uma página oficialmente ligada ao médium. “João de Deus mantinha a Casa da Sopa em Abadiânia. Quem vai a esses lugares é gente carente, presa fácil para cooptação”, especula Maria do Carmo.
Até aqui, a nova denúncia ampara-se em indícios muito vagos. “Ela não tem fundamento”, rebate o advogado Alex Neder, que divide a defesa do acusado com dois medalhões do direito: Alberto Zacharias Toron e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Neder contesta a prisão preventiva de seu cliente. “Ele não tentou movimentar dinheiro, ao contrário do que se divulgou. Não ameaçou testemunhas e apresentou-se à polícia de forma espontânea”, argumenta. O advogado espera que João de Deus ganhe o direito de aguardar seu julgamento em prisão domiciliar.
Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617
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