Ao longo de sua impressionante e vitoriosa trajetória, Lula se notabilizou pela habilidade acima da média no jogo das articulações políticas. Esse sempre foi um talento reconhecido até pelos mais renhidos adversários. Durante a campanha de 2022, talvez por confiar demais nessa capacidade, o petista se comportou com uma certa soberba ao ser questionado sobre como construiria os alicerces de apoio sustentado por uma base minoritária de esquerda dentro de um Parlamento majoritariamente de direita e fortalecido como nunca se viu antes na história. À época, Lula disse que o diálogo iria ser sua principal arma para sair dessa autêntica sinuca de bico da governabilidade (“Conversar na boa, à luz do dia”, afirmou). Aproveitou ainda para alfinetar o antecessor, Jair Bolsonaro, prometendo que teria um comportamento diferente no trato com deputados e senadores. “A gente não pode continuar com um Congresso que tornou o presidente da República refém”, declarou.
Até aqui, no entanto, as tentativas para fazer valer os pontos de vista de seu governo no Legislativo são um fracasso retumbante. Exemplos recentes disso foram as derrotas sucessivas colhidas nas últimas semanas em questões que vão da segurança pública à regulação das redes. Mesmo os triunfos relevantes obtidos no primeiro ano, como a aprovação da reforma tributária, acabaram sendo conquistados em boa parte graças ao empenho de líderes do Congresso, como Arthur Lira, o presidente da Câmara. Ironicamente, o petista, que criticou o antecessor por ter se tornado, nas suas palavras, refém do Congresso, adotou tática semelhante para tentar garantir a governabilidade, só que com resultados até aqui piores do que os de Bolsonaro por esse mesmo critério.
Conforme mostra reportagem da edição, a distribuição de emendas parlamentares na administração Lula vem privilegiando partidos que, na teoria, formam a base do governo, como PSD, MDB e União Brasil. Na prática, porém, mesmo agraciadas com esse dinheiro, nas votações importantes para o Palácio do Planalto essas legendas demonstram um alto grau de falta de compromisso — em alguns casos, mais da metade da bancada comporta-se de forma infiel. Se não bastasse isso, as legendas desse grupo são justamente as aquinhoadas com o fatiamento da Esplanada dos Ministérios aos aliados. Ainda que o atual governo tente minimizar a situação, ela é preocupante, pois o próprio Lula não parece convencido de que a realidade atual é bem distinta daquela encontrada por ele nos seus dois governos anteriores. Em outros termos, a ficha ainda não caiu para um presidente que vai se aproximando de completar dois anos de mandato e ainda patina em suas relações com o Legislativo. Cada vez mais, o incensado talento político do petista precisa reaparecer para que o governo não fique perdido e à mercê do Congresso nas grandes questões do país.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896