A política de saúde em torno da “maconha medicinal” passou a ser assunto discutido mais seriamente no país apenas no fim de 2014, quando um casal brasiliense conseguiu importar de maneira legal a primeira remessa de canabidiol, substância terapêutica derivada da Cannabis, para tratar as sucessivas convulsões de sua filha, portadora de uma síndrome rara. Há lugares onde a liberação existe há anos, como a Califórnia, que regulamentou a questão em 1996, e mais 33 estados americanos. Situação parecida se repete em países como Canadá, Uruguai, Austrália e Holanda. No Brasil, no entanto, a polêmica se arrasta, principalmente em razão de uma queda de braço entre ciência e ideologia sobre a liberação do cultivo para a extração do princípio ativo. Hoje, só uma entidade, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), de João Pessoa (PB), tem autorização judicial para o plantio. A situação piorou com a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro e seu discurso conservador, marcado pela oposição a qualquer tipo de flexibilização nesse tema. O ministro da Cidadania, Osmar Terra, interlocutor do governo na questão, entende que qualquer aval oficial, ainda que tenha por finalidade a produção de um remédio, dará vazão a “um começo da legalização” e serviria de alavanca para a expansão do consumo da droga.
O episódio mais recente da guerra travada em relação a esse tema ocorreu na segunda-feira 7, quando foi adiada por uma semana a reunião que finalmente colocaria sob votação a possibilidade de cultivo da erva com propósito medicinal no país. Na pauta, estariam duas propostas, ambas já submetidas a consultas públicas: uma para permitir o plantio por empresas autorizadas, em ambientes fechados e controlados; a outra para regulamentar o registro de medicamentos nacionais à base do canabidiol. Durante muito tempo, era proibida por aqui até a importação da substância, que só ocorria com autorização judicial por pacientes que precisavam do remédio para aliviar sintomas de doenças como Alzheimer, autismo e depressão. Isso mudou em 2015, e hoje basta o aval da Anvisa para trazer do exterior a droga. Mas a dose com 30 mililitros custa quase 3 000 reais — daí a luta para permitir a produção no país em larga escala.
Relator das propostas de liberação, o médico William Dib, presidente da Anvisa, é o principal fiador da medida e já anunciou que não desistirá mesmo sob forte oposição do governo. Em julho, logo depois de Dib defender publicamente a ideia em uma entrevista, o ministro Osmar Terra ameaçou fechar a Anvisa, que é subordinada à sua Pasta. Devido à pressão bolsonarista, nos últimos meses Dib perdeu o apoio de ao menos dois dos outros quatro diretores que têm poder de voto sobre as propostas. O peso do governo aumentou em julho, com a indicação do contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres para uma dessas diretorias, no lugar de Jarbas Barbosa. Torres já se manifestou contra a liberação, enquanto Barbosa era a favor. Como se não bastasse, o contra-almirante deve assumir a chefia da Anvisa em 2020. Ou seja, terá ainda mais poder e influência sobre a questão.
O governo diz que é contra o plantio para a obtenção do canabidiol, mas admite a possibilidade de permitir a produção no país de uma versão sintética da droga. A proposta começou a ser defendida pelo ministro Osmar Terra em julho. Na época, ele recebeu em seu gabinete representantes de um laboratório do Paraná que faz estudos para isolar a molécula da substância de forma sintética. O problema é que essa pesquisa se encontra ainda em estágio muito inicial. Além de não estar disponível para uso terapêutico, a versão artificial é criticada por cientistas devido à falta de comprovação de sua efetividade e ao seu custo, que tende a ser maior que o da versão do remédio extraída da planta. “É um produto que ainda não existe, é experimental. Não é a resposta mais adequada para quem precisa do medicamento hoje”, afirma o pesquisador Renato Filev, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. Para alguns especialistas pró-liberação, a ideia lançada pelo governo da versão sintética não passa de um jogo de cena para adiar pelos próximos anos qualquer decisão sobre o assunto que afeta milhares de pacientes.
Publicado em VEJA de 16 de outubro de 2019, edição nº 2656