Ataques de Musk contra Moraes reforçam urgência da regulação das redes
No lugar do que começa a se tornar um debate distorcido entre esquerda e direita, o país precisa pôr em prática um pacote de medidas sobre o tema
Em 26 de outubro de 2022, a famosa rede social do passarinho começou a virar um ninho de problemas e de polêmicas. Na data em questão, os funcionários da sede global do Twitter, na Califórnia, testemunharam uma cena, no mínimo, bizarra: quando as portas do elevador se abriram, Elon Musk adentrou o escritório, sorridente, carregando uma pia de porcelana na qual se lia a frase “Let that sink in” (“Deixe essa ficha cair”, em tradução livre). A tosca brincadeira ocorreu um dia antes que o bilionário sul-africano assumisse a presidência da plataforma, uma das maiores do planeta, e foi o primeiro presságio de que a gestão estava prestes a mudar — e para pior. Nos meses seguintes, o magnata, que controla também as gigantes tecnológicas Tesla e SpaceX, demitiu 80% dos trabalhadores, trocou o nome da companhia para X, reativou a conta do aliado político e ex-presidente americano Donald Trump, suspensa desde o atentado ao Capitólio, em 2021, e demoliu as estruturas de moderação de conteúdo ilegal, abrindo as portas para uma enxurrada de novos perfis dedicados à disseminação de notícias falsas, discursos de ódio e pregação política radical de extrema direita.
Sob a nova direção, o valor de mercado da empresa despencou e ela foi arrastada para uma série de atritos com governos, personalidades e instituições de países variados. Um dos mais recentes ocorreu no final de 2023, quando Musk tornou-se o primeiro investigado pela União Europeia por falta de medidas contra a desinformação em sua plataforma, violando a recém-aprovada — e pioneira — legislação do órgão que regula o funcionamento das redes sociais. Esse tipo de revés não foi capaz de desestimular o estilo de atuação arrogante e cínico do empresário, que tenta posar como paladino da liberdade de expressão, de forma a criar uma cortina de fumaça para a sua prática de manter um canal no qual circula toda sorte de barbaridades, sem que a empresa seja devidamente responsabilizada por isso.
Desde o último sábado, 6, o Brasil entrou no raio de ataques apelativos do bilionário, que divulgou um post na sua rede acusando a Justiça de violar o Marco Civil da Internet por meio das decisões de suspensão de perfis. Em seguida, Musk subiu o tom e prometeu não cumprir as ordens judiciais vindas do ministro Alexandre de Moraes, do STF, desafiando-o a se demitir ou se sujeitar a um processo de impeachment. O magistrado reagiu prontamente: tornou o bilionário um dos alvos do inquérito das milícias digitais que está aos cuidados do magistrado, no Supremo. Mesmo assim, o dono do X não apenas não se intimidou como não baixou o nível dos ataques. Na segunda, 8, chamou Moraes de “ditador do Brasil” e o acusou de influenciar o resultado das eleições de 2022 em benefício de Lula. O magnata chegou a dizer que o ministro tem o presidente “na coleira” e que, por isso, o petista nada fará contra ele.
No dia seguinte, Lula tentou minimizar o caso, disparando uma indireta contra o multimilionário durante uma agenda ambiental. “Tem até bilionário tentando fazer foguete, tentando fazer viagem para ver se encontra algum espaço lá fora, não tem. Ele vai ter que aprender a viver aqui”, disse. Dentro do STF, o caso resultou em nova demonstração de união em torno de Moraes, alvo principal dos ataques, sendo que alguns dos pares manifestaram isso de forma pública. “Decisões judiciais podem ser objeto de recurso, mas jamais de descumprimento deliberado”, disse o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso.
Por outro lado, as manifestações de Musk encontraram eco no bolsonarismo e alimentaram uma nova rodada de ataques ao Supremo. Horas depois dos primeiros posts, o ex-presidente Jair Bolsonaro republicou na mesma plataforma um vídeo datado de 20 de maio de 2022, em que ele chama Musk de “mito da nossa liberdade”. A partir daí, o exército bolsonarista entrou em ação, com centenas de publicações nas redes sociais em apoio a Musk e espalhando a surrada mensagem de que há um ambiente de perseguição política a Bolsonaro e aos opositores do governo. Algumas postagens foram escritas em inglês e republicadas no perfil do empresário, que tem mais de 180 milhões de seguidores no X. O blogueiro Allan dos Santos, que está banido das redes sociais no Brasil e foragido da Justiça após ter prisão preventiva decretada no inquérito das milícias digitais, fez duas lives no X, nas quais reiterou os ataques a Moraes.
As reações dos bolsonaristas, no entanto, não se restringiram ao meio digital. Parlamentares de direita discursaram no plenário em apoio a Musk e questionaram a atuação de Moraes, enquanto a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, dominada por bolsonaristas, chegou a aprovar uma moção de apoio ao empresário. Nas suas postagens, Musk replica um discurso que vem sendo adotado por políticos brasileiros no exterior. Capitaneada por Eduardo Bolsonaro (PL-SP), uma comitiva de parlamentares conservadores já esteve nos EUA e na Europa para angariar apoio de líderes estrangeiros da extrema direita à teoria, propagada pelo bolsonarismo, de que o Brasil vive um estado de exceção.
A politização do caso veio em péssima hora, pois o Brasil está muito atrasado na necessária regulação das redes sociais. No lugar do que começa a se tornar um debate distorcido entre esquerda e direita pela liberdade de expressão, o país precisa elaborar e pôr em prática um pacote de medidas urgentes para evitar que a internet se transforme de uma vez por todas numa terra sem lei. A polarização afasta o debate, com o perdão do trocadilho, do x da questão. Não é possível mais conviver com empresas que ganham bilhões servindo de veículos para crimes como a propagação de ódio e fake news sem que elas atuem na contenção desses problemas e sejam punidas quando não o fizerem. “A ausência de regulamentação nessa área resulta em insegurança jurídica”, afirma Filipe Medon, professor da FGV especialista em direito digital.
Tentativas existem no Brasil de pôr ordem na bagunça digital, mas o problema é que elas partem de várias frentes, sem que haja um consenso sobre os pontos principais e o sentido necessário de urgência (veja o quadro). O Judiciário tem se movimentado de forma mais assertiva. Por isso mesmo, tornou-se alvo dos principais ataques, mas mostrou que não vai se intimidar. Na quarta, 10, o ministro Dias Toffoli disse que em junho deve voltar à pauta uma ação, da qual é relator, cujo julgamento pode imputar maiores responsabilidades às plataformas, tudo o que o dono do X não aprova. O caso envolve o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as companhias de responsabilidade pelas publicações de seus usuários, um dos trechos mais questionados da primeira tentativa brasileira de enquadrar as redes sociais (veja o quadro). Segundo Toffoli, a ação estava parada desde maio de 2023, embora pronta para julgamento, em respeito à discussão sobre o PL das Fake News que acontecia no Congresso. Diferentemente dos demais poderes, o Judiciário não tem a prerrogativa da inércia e precisa responder, com as ferramentas que tem, aos problemas concretos mesmo diante do vácuo do Legislativo em relação ao tema. “Sem regulamentação, aplica-se o direito já existente, feito antes da existência dessas plataformas”, explica o professor Felippe Mendonça, doutor em direito do Estado pela USP.
A omissão do Congresso em relação ao assunto ganhou um novo capítulo nesta semana. Em meio à crise, parlamentares pressionaram o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a pôr em votação o Projeto de Lei 2630/2020. O texto, apelidado de PL das Fake News, propõe a responsabilização das plataformas por conteúdo publicado por terceiros. Até o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em mais um momento em que se contrapôs a Lira, manifestou-se pela votação da matéria, que foi aprovada no Senado em 2020 e enviada à Câmara, onde já tem relatório feito pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) pronto para ser votado. Lira afirmou considerar que a contaminação política em torno do tema inviabilizou a discussão do relatório, que ele descartou, devolvendo o tema à estaca zero. Anunciou a criação de um grupo de trabalho para, em até quarenta dias, apresentar uma nova proposta. Se quiser ter algum resultado prático, o grupo precisa concluir os trabalhos ainda no primeiro semestre, porque a partir de junho o Congresso fica esvaziado em virtude do recesso, das festas juninas e do calendário eleitoral. Será difícil.
Enquanto isso, no Senado, parlamentares discutem o Marco Civil da Inteligência Artificial, proposto por Pacheco em maio de 2023, que estabelece diretrizes para o uso da ferramenta. O texto está sendo discutido em uma comissão técnica e já é alvo de pressão das plataformas — não há previsão para ir a plenário. O governo Lula, que apoia os dois projetos, não tem nenhuma iniciativa própria sobre o tema, apesar de ter dito com ênfase, ao assumir, que a regulação das redes sociais seria prioridade. Nesta semana, após os ataques de Musk, Jorge Messias, o chefe da Advocacia-Geral da União e um dos porta-vozes do governo sobre o tema, disse que a prioridade será levar a discussão sobre a regulação das redes sociais para um organismo internacional, como o G20, que será realizado no Brasil — ou seja, nada do qual se possa esperar muito.
Ao contrário do que alardeiam os correligionários de Musk, a regulação das redes sociais é necessária e nada tem a ver com censura. Para especialistas, é essencial que os direitos individuais dos usuários sejam levados à mesa de debate, mas a discussão não pode ser contaminada por setores que, visando à própria impunidade, defendem uma liberdade de expressão totalmente irrestrita e irresponsável, algo que não existe em nenhuma democracia do mundo. “A estratégia de Musk é instrumentalizar a liberdade de expressão para legitimar discursos antidemocráticos na sua plataforma. Nesse cenário, o direito à expressão torna-se inimigo do Estado democrático de direito, em vez de ser parte essencial dele”, avalia Veridiana Alimonti, diretora de políticas para a América Latina da Electronic Frontier Foundation (EFF). Existem, claro, preocupações concretas em relação à atuação do Estado, particularmente do Judiciário, como moderador do diálogo nos canais de comunicação. O próprio Moraes é com frequência criticado por supostos excessos e pela falta de transparência em suas decisões. É fato, porém, que recentemente o rigor da Justiça foi necessário, porque o país esteve à beira de um golpe, em grande parte inflado pelo ambiente de terra de ninguém das redes sociais. É certo também que, em um momento de normalidade, deve-se voltar a ter uma preocupação maior com a questão para não deixar dúvidas sobre os atos processuais. No entanto, o risco de excessos judiciais nesse ambiente é fruto também da ausência de leis que obriguem plataformas como o X a adotar medidas próprias de moderação. “Enquanto a legislação não avança no Congresso, o STF fica sobrecarregado como a única instituição com algum poder para combater o extremismo nas redes”, diz Estela Aranha, membro do Conselho da ONU para inteligência artificial e ex-secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça.
Não faltam evidências do perigoso conteúdo de cunho extremista que ronda as redes sociais. Nas últimas décadas, mais de quarenta casos de tiroteios em massa nos Estados Unidos estavam relacionados ao consumo de conteúdos envolvendo violência explícita, discurso de ódio e neonazismo, segundo estudo recente publicado no periódico Sage Journals. No ano passado, um aluno que esfaqueou cinco pessoas em uma escola de São Paulo e deixou uma professora morta, descobriu-se, era participante ativo de comunidades virtuais de ódio, chegando a adotar o mesmo sobrenome que um dos atiradores do massacre de Suzano (SP), ocorrido em 2019. Os casos notórios incluem, ainda, a massiva propagação de fake news sobre vacinas por grupos de extrema direita no Twitter, incluindo falsas relações entre imunização e aids que, até recentemente, ainda estavam no ar.
A liberdade de expressão é um pilar fundamental de qualquer sociedade civilizada e precisa sempre ser defendida com veemência. Ocorre que, nem de longe, Elon Musk é a pessoa mais indicada para empunhar essa bandeira. Não lhe faltam doses espaciais de hipocrisia. Enquanto acusa o Brasil de censura, ele se cala sobre a China, onde o X é proibido. Lá o bilionário tem a principal fábrica da Tesla e mantém relações amigáveis com autoridades do partido único que governa o país. No final de 2022, o empresário bloqueou jornalistas de alguns dos principais veículos americanos, como The New York Times, CNN e The Washington Post, que cobriam suas atividades, alegando que eles expunham fatos privados, como a sua localização em tempo real. A mesma acusação de bloquear veículos e profissionais de imprensa foi feita em 2023 pela Comissão Europeia. Também é célebre a frase de Musk, em 2020, ao ser questionado sobre o seu apoio ao movimento que levou Evo Morales a renunciar à Presidência da Bolívia, país onde tem interesse nas reservas de lítio, essencial para suas empresas: “Nós daremos golpe em quem quisermos. Lide com isso”. Com um currículo desses, soa pretensiosa, desrespeitosa e inadequada a tentativa do multimilionário de dar qualquer lição de moral ao Brasil e suas instituições. A melhor reação para isso é o país fazer um esforço maior para acabar com a terra sem lei de plataformas como o X. Musk não vai curtir, certamente.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888