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As vítimas do feminicídio, um crime que cresce a ritmo preocupante

Os traumáticos momentos de horror e de brutalidade nas memórias das mulheres que sofreram tentativas de assassinato por serem mulheres

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h52 - Publicado em 14 fev 2020, 06h00

Há um ano, a paisagista Elaine Caparroz começava a saborear o que considerava a melhor fase de sua vida: tinha retornado de um intercâmbio na Austrália, via-se às voltas com a inauguração de um negócio próprio (uma clínica de estética) e andava com a autoestima elevada pela dedicação à academia, que lhe rendera condicionamento e forma física invejáveis. Sentia-se plena, aos 55 anos. Esse momento de felicidade acabou sendo interrompido por um pesadelo. Em 16 de fevereiro de 2019, ela decidiu receber em seu apartamento, na Barra da Tijuca, no Rio, o estudante de direito Vinícius Batista Serra, 27. Durante meses os dois vinham trocando mensagens pelo Instagram antes do encontro. Depois do jantar, após deitar-se no peito do rapaz galanteador e carinhoso, Elaine caiu no sono (acredita ter sido dopada) e acordou sendo esmurrada. Passou quatro horas sob ataque brutal. Serra desferiu socos e pontapés nela e a arrastou pelos cabelos no chão. A residência ficou com inúmeras manchas de sangue. A força dos socos literalmente moeu os ossos da face da vítima, transformando-os em pequenos fragmentos. Elaine levou mais de cinquenta pontos na boca e teve raízes de dentes destruídas. O inchaço a impedia de abrir os olhos e respirar pelo nariz. Ela só conseguiu olhar-se no espelho quatro dias após o episódio. “Mesmo com dor dilacerante e sensação de impotência, eu penso até hoje: tive sorte”, diz Elaine.

Soa como algo absurdo alguém experimentar tamanha crueldade e ainda se sentir afortunada, mas a paisagista tem certa dose de razão. Ela foi uma das sobreviventes de um tipo de crime que cresce no país a um ritmo preocupante. De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a quantidade de tentativas de feminicídio quase triplicou entre 2018 e 2019. A média foi de dez ocorrências do tipo por dia no ano passado. Infelizmente, muitas mulheres não tiveram a mesma “sorte” de Elaine. Em 2018, registraram-se 1 206 casos de feminicídio, um aumento de 30% em comparação com 2016 — os dados de 2019 ainda não foram compilados. O problema cresce e não é uma questão localizada: acontece em todas as partes do país. Em Candeias do Jamari, Rondônia, a professora Joselita Félix, de 47 anos, havia sido agredida a murros pelo ex-­marido Ueliton Aparecido, 35, em 16 de março de 2019. Ela não aguentou e denunciou o caso à polícia. “‘Tô’ muito, muito machucada, muito machucada. Eu tenho um pouco de vergonha de falar isso, entendeu? Porque nunca apanhei de ninguém. Fui para a delegacia, foi a coisa mais horrível que eu passei na minha vida”, disse a uma amiga por mensagem. O homem pagou uma fiança de 4 000 reais e acabou sendo solto. Um dia depois, a “coisa mais horrível” aconteceu. O ex-marido invadiu a casa e a matou com uma pancada na cabeça, utilizando um pedaço de madeira.

Em Belo Horizonte, Minas Gerais, Tereza Cristina Peres, 44, tinha conseguido nos tribunais que o ex-marido Paulo Henrique da Rocha, 33, se mantivesse a uma distância mínima de 500 metros dela. Segundo familiares, isso ocorreu depois de o brutamontes ter sido denunciado “mil vezes” por agressões e ameaças. A proteção imposta pela Justiça não adiantou. Em 29 de julho de 2019, quando Tereza saía da academia com o filho de 22 anos, o homem se aproximou e matou os dois com cinco tiros, distribuídos no peito e na cabeça, segundo a polícia. Em Manaus, Amazonas, Stefane Rocha Chaves, 20, não resistiu depois de receber vinte facadas desferidas pelo companheiro. O criminoso disse à polícia que tivera uma crise de raiva por causa de uma discussão sobre a perda de uma chave (confira esses e outros casos de morte registrados no país em 2019 e 2020 nos quadros ao longo da reportagem).

Esse crime repugnante sempre existiu, mas ficava escondido dentro das estatísticas de homicídios simples ou qualificados. Ele só passou a ser considerado um agravante de homicídio em março de 2015, com pena de reclusão de doze a trinta anos. A lei prevê ainda o aumento da pena em um terço se o crime é praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra menor de 14 anos, maior de 60 ou pessoa com deficiência e na presença de descendente ou ascendente da vítima. Com o novo enquadramento, o feminicídio passou a ser computado isoladamente. O aumento da coragem das mulheres para fazer denúncias e um olhar mais atento de toda a sociedade sobre o tamanho do problema são outros fatores que explicam a escalada das ocorrências. Dessa forma, o lado bom do fenômeno é que nunca se discutiram tanto as raízes dessa aberração e as possíveis soluções para ela. “Falar sobre esse crime e combater o machismo não é modismo”, afirma Gabriela Manssur, promotora e integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo. “É dever de todos mudar esse quadro.”

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Quase toda mulher conhece alguma experiência de violência doméstica, em casos que vão além da agressão física. “Impor limite sobre o que podemos vestir e desqualificar nossas posições é tão grave quanto um tapa”, afirma Gabriela Manssur. Os traumas psicológicos muitas vezes são irreversíveis. A tatuadora Roberta Marchiori ficou casada ao longo de dezessete anos com o pai de três de seus quatro filhos, suportando toda sorte de agressão. Recebeu socos, tapas, arranhões — até que um dia foi arremessada em uma porta de vidro. Recentemente, Roberta obteve medida protetiva da Justiça: seu ex-­marido tem de ficar a uma distância de 250 metros dela. “Sabe o que mais dói? Não são os tapas, as ‘bicudas’, os puxões de cabelo. Mas ele ter me chamado de feia, de incompetente, de traste.”

Diminuir e humilhar a mulher faz parte da estratégia de tirar a força, coragem e liberdade da companheira. Os xingamentos, todos horríveis, têm em comum a conotação sexual: vaca, galinha, prostituta… “Nenhum homem começa o namoro dando um tapa na cara”, lembra a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo (veja o quadro). O DNA de um feminicida é formado pela sensação de posse da companheira. Daí querer escolher o que ela veste e com quem anda. No começo, esse tipo de comportamento pode estar envolto em uma falsa aura de carinho e proteção (“Eu confio em você, mas os outros não prestam”). Ao ceder às pequenas coisas, cria-se um terreno fértil para a escalada da violência. “Se a mulher busca a ajuda de amigos, da polícia e de psicólogos, pode-se evitar esse tipo de crime”, diz a delegada Ferrari. Na cabeça do agressor, existe uma justificativa mentirosa e sem amparo na realidade. “É comum escutar relatos de feminicidas com frases do tipo ‘Precisei matar porque minha mulher não quis reatar o casamento’ ou ‘Ela me fez perder a cabeça’ ”, conta Sueli Amoedo, coordenadora dos Direitos da Mulher de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

Como forma de reduzir a violência doméstica, a cidade implantou a Patrulha Guardiã Maria da Penha, em 2018, em que a guarda municipal realiza rondas para vistoriar se a medida protetiva está sendo cumprida. Isso é fundamental para coibir esse tipo de crime: apenas 3% das vítimas de feminicídio tinham feito esse requerimento à Justiça. A promotora Gabriela Manssur levou a Brasília um pacote anticrime de violência contra a mulher, com vinte medidas para diminuir a violência doméstica. Especialistas também discutem o uso de tornozeleira eletrônica pelo agressor impedido pela Justiça de se aproximar de sua ex-­mulher. Em outra frente, a promotora criou o projeto Tempo de Despertar, em 2014, para promover a reflexão, a conscientização e a responsabilização dos autores de violência doméstica. Os encontros da iniciativa fizeram reduzir de 65% para 2% a reincidência de agressões.

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A rede de apoio formada pela sociedade civil também se mostra fundamental. “Fiquei sem abrir meu olho e a boca por semanas, pois minha face foi moída em pedaços”, diz a comerciante Silvana Maria, de 42 anos. Ela levou dezessete facadas na face, mesmo tendo protetiva. Na sala de sua casa, fingiu-se de morta para que o ex desistisse de arrancar seu coração na presença da filha de 9 anos. Duas semanas após o ataque, Silvana recebeu uma ligação da dermatologista Carla Góes, de São Paulo, criadora do projeto Um Novo Olhar. A vítima realizou tratamento com laser para amenizar a paralisia facial e resgatar a autoestima. “O agressor ataca locais que minam a identidade feminina, como rosto e seios”, diz a médica.

Foi exatamente o que ocorreu com a paisagista Elaine Caparroz. “Os murros e chutes se concentraram na minha cara”, lembra. Nos últimos meses, ela passou por cirurgias para reconstruir a face e restabelecer os dentes quebrados. O agressor, Vinícius Serra, encontra-se preso em caráter preventivo no Presídio José Frederico Marques, em Benfica, no Rio. Ele estrangulou Elaine até ela desmaiar. Por pensar ter tirado a vida da vítima, foi embora — mas acabou sendo detido pelo porteiro do condomínio, que esperou a chegada da polícia. Alegou na delegacia ter tido um surto e vai a júri popular em 13 de março. Elaine teve síndrome do pânico e mudou de apartamento. “Meu rosto ainda não voltou ao normal, mas encontrei forças ao me transformar em uma voz contra a violência doméstica”, afirma. Só recentemente ela tomou coragem de voltar à academia. No próximo dia 16, irá a uma igreja agradecer por ter sobrevivido ao pesadelo de um ano atrás. “Considero como a data do meu renascimento”, conta. Que a força dessa e de tantas outras vítimas continue movendo a sociedade na direção de inibir e punir esses agressores covardes.


Espancada e torturada por quatro horas

Elaine Caparroz

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“O resgate de mim mesma tem sido um longo caminho. No dia 16 de fevereiro completa um ano o ataque sofrido dentro de minha residência. Fui espancada e torturada por quatro horas dentro de casa por um homem que conheci pelo Instagram. As sequelas foram enormes, no corpo e na mente. Além de perder muito sangue, tive inúmeras fraturas nos ossos da face. Não conseguia abrir o olho nem o maxilar. Levei mais de cinquenta pontos na parte interna da boca, que ficou em carne viva. A força dos socos foi tamanha que duas raízes de dentes chegaram a quebrar. Fiz cirurgias de restauro do rosto e da arcada dentária. Tive também de mudar de endereço. O cara não apenas bateu, mas também eliminou uma fase legal da minha vida: eu tinha acabado de voltar de um intercâmbio na Austrália, estava abrindo um negócio e treinando todo dia em academia. O trauma de ser vítima de uma tentativa de feminicídio nos faz ter medo do estranho, de sair na rua. Mas para tudo há uma lição: a que ficou para mim é a necessidade de estimular as mulheres a ter coragem de gritar por socorro.”
Elaine Caparroz, 56 anos, empresária


Dezessete facadas no rosto

FEMINICÍDIO
(Caio Guatelli/VEJA)

“No dia 24 de setembro, cheguei em casa após sair para pagar umas contas. Meu ex-marido pulou o portão e quis saber onde eu estava. Não respondi, apenas pedi que saísse. Naquele momento, reparei em uma gaveta aberta no armário da cozinha e senti uma premonição ruim. Ele exigiu ver meu WhatsApp. Antes de ler algo, me deu um soco. Minha filha de 9 anos ligou para o 190. Meu ex-marido, com quem fiquei doze anos, quebrou o telefone e começou a me golpear com uma faca de cortar pão. Ao todo, foram dezessete facadas. Cortei meus dedos tentando tirá-la da mão dele. Gritei por socorro, mas meu ex-companheiro havia trancado o portão. Eu me fingi de morta quando ele tentou arrancar meu coração com a faca. Quando minha filha abriu o portão e a vizinha entrou, esse homem prendeu minha cabeça com a perna para ver se eu tinha morrido. Depois, chutou minha cara ensanguentada, achando que havia completado o serviço. Ele lavou as mãos de sangue na pia da cozinha antes de ir embora. Não sei como sobrevivi. Fiquei sem abrir o olho direito por muitas semanas. Tive fraturas na mandíbula e na face. Não conseguia abrir a boca para comer. Essa tentativa de feminicídio ocorreu quando eu havia obtido na Justiça a ordem para mantê-lo afastado de mim pelo menos 50 metros. Mas 50 metros é pouco: ele monitorava minha vida.”
Silvana Maria Gomes, 42 anos, comerciante

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Bateu na mãe e na filha

FEMINICÍDIO
(Caio Guatelli/VEJA)

“A primeira agressão ocorreu quando eu estava grávida de nossa primeira filha. Irritado porque fui buscá-lo na rua, onde consumia bebida e cocaína, ele me arrastou pelo chão de casa. Meu marido durante dezessete anos, com quem tive três filhos, ele me bateu inúmeras vezes. Sempre em regiões onde as pessoas não poderiam ver os hematomas, como os seios. Em uma ocasião, ao me ver apanhando, minha mãe foi me socorrer e acabou levando uma cotovelada. O nariz dela quebrou. No ano passado, minha mãe, que sofria de problemas neurológicos, morreu. Em uma das muitas vezes em que meu marido me bateu, ele disse a seguinte frase: ‘Você matou a mãe, nem ela te aguentou’. Foi meu estopim. Escutei ele me chamar de p…, vagabunda, imunda e apanhei por muitos anos. Aguentei tudo, achando que poderia mudá-lo, mas envolver minha mãe foi demais. Eu parti para cima, e ele me arremessou em uma porta de vidro. Minha cabeça se cortou, na presença de meus dois filhos mais novos. Com o sangue escorrendo, ele me disse: ‘Olha o que você me obrigou a fazer’. Foi a primeira vez que pedi a ajuda de vizinhas, que chamaram a polícia. Hoje a Justiça garante que ele fique sempre afastado 300 metros. Agora sou feliz e meus filhos têm paz.”
Roberta Marchiori, 38 anos


Tentou matar a mulher no hospital

Feminicídio
(Caio Guatelli/VEJA)

“Meu marido é viciado em crack e não sabe o que é verdade ou mentira. Já fui acordada aos socos porque ele tinha alucinações de que estava sendo traído. Quando ele sumia por dias, eu tinha um pouco de paz. Mas o retorno era pior. Apanhei de chutes, de tapas… A última vez foi quando ele tentou me matar a facadas no meu quarto mês de gestação. Como tive um sangramento, ele foi comigo ao hospital, até para saber o que eu iria dizer. Menti ter caído da escada, mas as enfermeiras viram hematomas pelo corpo. Sabiam que não era o caso. Com medo de que eu contasse a verdade, ele apareceu com uma faca no hospital para me matar. Um médico impediu o ato, e ele fugiu. Não tinha como voltar para meu lar, sob o risco de ser assassinada. Hoje vivo com meu filho de 6 anos em uma casa de aluguel social, paga pelo estado. Deixei o meu lar para trás. Não saí com roupa, com uma foto minha de infância… Meu filho, fruto de outro relacionamento, não tem um brinquedo sequer. Tem momentos em que penso que fui penalizada por ter de ficar sem nada, sendo que sou a vítima da história. Por outro lado, não há alívio maior que dormir e acordar sem apanhar, sem ser humilhada.”
V.S., 23 anos, dona de casa

Com reportagem de Eduardo Gonçalves

Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674

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