O governo federal foi rápido ao condenar a agressão a Israel, resgatar os brasileiros na região e marcar posição sobre o conflito. Nas primeiras horas após os ataques, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Itamaraty, ministros e aliados divulgaram notas de repúdio ao episódio. Lula se disse chocado com o ocorrido (que classificou de maneira acertada como terrorismo), expressou condolências aos familiares das vítimas e defendeu a existência de dois Estados como solução. Mas um detalhe chamou a atenção: ninguém citou o Hamas, o grupo palestino responsável pelo atentado. A esquerda, no geral, foi na mesma toada. Apesar de reprovar os atos e prestar solidariedade aos dois lados, a nota oficial do PT, assinada pela presidente, Gleisi Hoffmann, também omitiu o nome do personagem central no horror contra os israelenses. A postura gerou uma saraivada de críticas nas redes sociais, deu munição à combalida oposição no Congresso e colocou a esquerda na defensiva. Foi apenas cinco dias após o início dos ataques que Lula, enfim, divulgou texto em que cita a facção e pede a libertação imediata de crianças israelenses feitas reféns. O estrago, no entanto, já era grande.
A dificuldade para dar nome aos bois gerou constrangimentos variados ao governo e à esquerda. Um exemplo foi a circulação intensa de um manifesto de apoio ao Hamas, assinado em 2021 por petistas de peso como os hoje ministros Alexandre Padilha e Paulo Pimenta e o deputado Zeca Dirceu, líder do PT na Câmara, além de parlamentares do PSOL, PCdoB e PSB. A carta, com o título “Resistência não é terrorismo”, repudiava o governo britânico que classificara a organização como “fundamentalmente terrorista e antissemita”. Padilha foi às redes para explicar que assinou o documento na pandemia, quando aumentar o tensionamento na região tornaria mais difícil garantir a segurança da população. “Em nenhuma hipótese essa decisão pode ser confundida com apoio a qualquer tipo de violência”, disse. O ministro, no entanto, ficou em outra saia justa após vir à tona o seu encontro com o vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina, Sayid Tenório — autor de posts pró-Hamas na internet —, no Palácio do Planalto, cinco dias antes dos ataques a Israel. Padilha precisou telefonar para o presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Claudio Lottenberg, deu a sua versão e prometeu participar de um encontro com a comunidade judaica. Já Sayid perdeu o cargo de assessor do deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA).
Como já era de se esperar, a oposição usou tudo isso a seu favor. Deputados e senadores protocolaram pedidos de explicações a Padilha sobre o encontro com Sayid e ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, por seu silêncio sobre o Hamas. O ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, foi duramente criticado por dizer que o ataque “não é fato isolado” e que Israel “abandonou o processo de paz”. Deputados como Carlos Jordy, Carla Zambelli e Bia Kicis, todos do PL, e até o ex-presidente Jair Bolsonaro tentaram colar no PT a imagem de “amigo” do Hamas. Notícias falsas sobre a relação entre o partido e os terroristas começaram a pipocar na internet. O governo precisou desmentir a informação de que o Brasil teria feito uma doação ao grupo durante o segundo mandato de Lula.
Para além do Palácio do Planalto, a posição dúbia em relação ao Hamas gerou estilhaços a outros atores da esquerda. O deputado Guilherme Boulos (PSOL), pré-candidato à prefeitura de São Paulo, foi criticado por não mencionar o grupo, precisou se reposicionar, mas não evitou uma baixa importante na campanha. Jean Gorinchteyn, judeu e ex-secretário da Saúde no governo de João Doria, foi contratado para construir propostas na área e ajudar a colocar Boulos como um candidato moderado, mas pediu demissão. “Claramente Boulos tem dificuldade por conta de sua base e aqueles que apoiam sua candidatura, mas eu também tenho as minhas bases, que começam pela minha família e pelos meus pares”, disse Gorinchteyn. Bolsonaristas espalharam uma foto antiga em que Boulos aparece ao lado de uma pedra na Cisjordânia com a frase “PSOL com a Palestina”. O deputado diz que sua defesa do povo palestino é pública, reiterou que o Hamas não representa a população local e condenou ataques violentos a civis. “Lamento muito que, num momento trágico como este, setores de extrema direita no Brasil inventem fake news e trabalhem com mentiras com finalidades eleitoreiras”, declarou.
Fundado em 1987, o Hamas, apesar de seu histórico violento, venceu as eleições legislativas em 2006, derrotando o movimento rival Fatah. Desde então, controla a Faixa de Gaza. A controversa relação com o PT vem de longa data — ao menos desde 2004, quando o partido condenou o assassinato do xeque Ahmed Yassin, líder espiritual do grupo, como “ato de terrorismo”. Assinada pelo então presidente José Genoino, a nota classifica como “inaceitável que um primeiro-ministro (Ariel Sharon) ordene, supervisione pessoalmente e comemore o ‘êxito’ de uma ação terrorista como essa”. Em 2022, o Hamas parabenizou Lula pela vitória. Gleisi Hoffmann precisou vir a público agora para dizer que nunca recebeu um integrante da organização islâmica desde que assumiu a presidência do PT, em 2017.
Por trás da relação oblíqua entre o PT e o Hamas, habita uma contradição: o que aproxima uma legenda progressista de um grupo teocrático e ultraconservador, abertamente oposto a pautas como casamento homoafetivo, legalização do aborto e descriminalização de drogas? Para especialistas, o alinhamento ideológico entre as entidades é baseado não nas pautas de economia ou costumes, mas nas antigas ideias de luta anticolonial e resistência a um “neoimperialismo” representado por Israel. “Parte da esquerda brasileira vê na Palestina uma situação de ‘guerra justa’ e teme enfraquecer sua base se o Hamas for condenado tão severamente quanto o regime israelense”, avalia David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP. A ideia de antiamericanismo e oposição à direita também contribui para que os dois encontrem terreno comum em suas pautas. “O governo Netanyahu, além de amplamente apoiado pelos EUA, é visto como um regime de extrema direita, o que coloca o Hamas em uma posição favorável aos olhos da esquerda brasileira”, diz Marcus Vinicius de Freitas, professor de relações internacionais na China Foreign Affairs University (CFAU), em Pequim.
O mesmo raciocínio de oposição à direita e à hegemonia americana se aplica a outras amizades polêmicas, no mínimo, cultivadas pelo governo Lula — como as ditaduras da Venezuela, Cuba e Nicarágua, unidas por uma noção de “solidariedade latino-americana”. Para o PT, manter boas relações com esses governos é essencial, não apenas para fortalecer a base mais à esquerda, mas para garantir o apoio dos vizinhos e dar legitimidade internacional às causas do partido — exemplo foi a reação latino-americana à prisão de Lula. Em 2023, já de volta ao poder, o petista retribuiu os acenos, recuando nas críticas do governo brasileiro à ditadura na Nicarágua e pedindo, em fóruns mundiais, o fim das sanções a Cuba e Venezuela. “Ao justificar que parte dos problemas é resultado dos embargos, Lula omite problemas que são causados pelos regimes desses países”, afirma Vladimir Feijó, professor de direito e comércio exterior na Faculdade Arnaldo Janssen. “A esquerda brasileira tem dificuldade de posicionar o mundo com os olhos do século XXI. Ainda olha com os olhos do século XX, onde esses atores eram todos tidos como uma resistência contra o capitalismo”, opina Leandro Consentino, doutor em ciência política pela USP e professor do Insper.
Os atentados do Hamas são mais um carimbo na longa lista de atrocidades, autoritarismos e abusos humanitários para os quais o PT fez vista grossa. As consequências dessa relativização prometem trazer dores de cabeça para Lula e aliados. Durante as próximas campanhas políticas, certamente serão cobrados pela constrangedora situação de terem criticado o terrorismo evitando citar os responsáveis pela barbárie. Um autêntico tiro no pé.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863