As intrigas e bastidores encontrados nos arquivos hackeados da Vaza-Jato
A garimpagem revela histórias curiosas envolvendo investigadores e investigados, inclusive de alguns que ficaram muito conhecidos durante o trabalho
Há seis anos, executivos da então maior empreiteira do país revelaram com desenvoltura desconcertante a maneira como conseguiam contratos bilionários no governo: pagando propina a ministros de Estado, governadores, parlamentares e ao mais famoso investigado da Lava-Jato, o então ex-presidente Lula, que chegou a ser condenado e preso por corrupção. Como se sabe, um hacker invadiu os chats de mensagens utilizados pelos procuradores encarregados da investigação e, na sequência, teve acesso ao computador funcional do chefe deles, Deltan Dallagnol. Walter Delgatti, o criminoso, copiou mais de 2 milhões de arquivos. Neles, havia conversas que traziam evidências de que o juiz Sergio Moro, responsável pelos processos, atuava de maneira parcial. A Lava-Jato foi desmoronando, as condenações foram pouco a pouco sendo revertidas e, na semana passada, uma decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, praticamente sepultou o que ainda restava do maior escândalo da história, ao anular as provas de corrupção apresentadas pelos executivos da empresa em acordo de colaboração. Em sua sentença, o magistrado classificou a atuação dos procuradores como “tortura psicológica”, chegando a essa conclusão com base nas mensagens obtidas ilegalmente, e anunciou a liberação de todo o acervo do hacker aos investigados.
Desde 2019, advogados dos personagens envolvidos no escândalo escarafuncham esses arquivos, que ganharam o nome de Operação Vaza-Jato, em busca de algo que possa ajudar seus clientes. Embora se acredite que o que havia de mais importante já foi encontrado — com destaque para o que gerou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e a anulação da condenação do presidente Lula —, o gigantismo do material impede essa certeza absoluta. São centenas de chats com milhares de mensagens cada um, atas de reuniões, depoimentos, calhamaços de documentos, planos de investigação, análises, comentários, fotografias e informações pessoais. Além dos achados já divulgados, a garimpagem, por enquanto, resultou apenas em intrigas, disputas de poder e histórias curiosas envolvendo investigadores e investigados, inclusive de alguns que ficaram muito conhecidos durante o trabalho e outros que tentaram pegar carona na popularidade do caso — uma espécie de lado B da Vaza-Jato. Conheça algumas dessas futricas.
Os presentes de Lula
A exemplo do que ocorre hoje com Jair Bolsonaro, envolvido em acusações de ter embolsado ilegalmente presentes e joias recebidos durante o mandato, a Lava-Jato apostava que descobertas sobre eventuais ilegalidades envolvendo bens do acervo de Lula poderiam robustecer acusações contra o petista. O problema: nem os procuradores conseguiam detectar com 100% de certeza, entre portarias e decretos, o que poderia ou não ser incorporado ao patrimônio privado de um político que havia deixado o Planalto e tampouco casos em que haveria crime ou mero desvio administrativo. Em março de 2016, um procurador escreveu que “mesmo obras de arte, recebidas no mandato, são do acervo privado do presidente”. O caso foi arquivado.
A provocação de Okamotto
Durante as investigações, em 2016, os procuradores e a Polícia Federal mantiveram sob o mais absoluto sigilo o planejamento e a execução de uma das fases mais delicadas da operação: a busca autorizada pela Justiça no Instituto Lula. Acreditavam que lá encontrariam documentos que mostrariam a relação da entidade com as empreiteiras envolvidas em corrupção. Não encontram nada de relevante. Os procuradores, porém, ficaram intrigados com um bilhete que estava sobre uma mesa, no qual estava anotado “levantamento Lava-Jato”, em cima de alguns documentos sem importância. Os computadores haviam desaparecido e a rede wi-fi estava desligada. Os procuradores atribuíram ao presidente do instituto, Paulo Okamotto, a autoria da provocação, além de concluírem que a operação havia vazado.
Ministério Público x Polícia Federal
Parecia que o Ministério Público e a Polícia Federal trabalhavam em absoluta sintonia. Parecia. “Eles vão passar a perna na gente”, escreveu aos colegas um dos procuradores. Em 2017, um delegado resolveu questionar Deltan Dallagnol, o chefe da força-tarefa, a quem considerava excessivamente midiático e detentor de aspirações políticas — o que se provaria depois verdadeiro. O policial acusou os procuradores de pressioná-lo. “Talvez o excesso de estratégia, de facebook, de twiiter (sic), tenha retirado a capacidade de as vezes nos atermos ao simples, aos casos em si. (…) Talvez alguns devessem parar de querer achar que tudo acontece de ruim na operação é parte de um grande plano maligno para acabar conosco. (…) É óbvio que respeito sua opinião e você, não vou lhe desrespeitar ou lhe xingar, ou algo do tipo. Você é Deltan Dallagnol, até minha vó lhe segue no facebook, quem sou eu pra te tratar mal”, disse o policial em uma sucessão de mensagens armazenadas no computador.
STF: relações de amor e ódio
O STF funcionava como bússola para as pressões que recaíam sobre a Lava-Jato, mas também era o alvo preferencial dos ataques dos procuradores, que tentaram investigar clandestinamente os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, como mostrou o lado A da Vaza-Jato. O decano, aliás, recebe nos chats de mensagens apelidos pouco edificantes, como “Gilmau”, e é alvo de intrigas variadas. Luiz Fux é tratado como um “insider qualificado” dentro da Suprema Corte. Em 2016, uma procuradora escreve que executivos da Odebrecht estariam omitindo informações preciosas envolvendo juízes e arremata: “Janot (o procurador-geral da República) sabe de alguns (nomes) relativos ao judiciário, que não veio em nenhum anexo”.
O duelo de delações
Os acordos de colaboração foram essenciais para que a Lava-Jato desvendasse o esquema de corrupção na Petrobras. Havia tática e método. Para estimular os potenciais delatores, os investigadores espalhavam falsos rumores. Fizeram chegar às empreiteiras investigadas que assinariam apenas um único acordo. Odebrecht e OAS rapidamente se apresentaram para contar o que sabiam. Durante a negociação, um dos procuradores avisou aos representantes da Odebrecht que a OAS havia delatado políticos do PSDB. Ato contínuo, os advogados da empreiteira apresentaram anexos com a relação de tucanos que haviam recebido propina. “Resumindo: nada como a livre concorrência”, comemorou o procurador. Dallagnol concordou com a estratégia: “Não venham querer criar cartel aqui kkkk”. Ironizou.
O delegado informante
O cerco ao então ex-presidente era jocosamente chamado de “festa” pelos procuradores. No ápice da investigação, a Lava-Jato recebia uma enxurrada de informações sobre Lula e sua família. Algumas eram requentadas, sabidamente sem fundamento, como a de que um dos filhos do petista seria proprietário de fazendas no interior do Pará. Os procuradores não levavam esse tipo de denúncia a sério, até o dia em que um homem se identificou e garantiu que tinha áudios e testemunhos de que o Lula e o filho eram sócios de um banqueiro em uma propriedade na cidade de São Félix do Xingu (PA). O que chamou a atenção dos investigadores, no entanto, foi a identidade do informante: Protógenes Queiroz, o ex-delegado da Polícia Federal que, durante o governo Lula, ficou famoso por comandar barulhentas operações de combate à corrupção.
O homem do mensalão
Já se sabia que o ex-publicitário Marcos Valério havia flertado com a Lava-Jato ao propor, ainda em 2015, fechar um acordo de delação e apresentar pontos de conexão entre o esquema de corrupção na Petrobras e o mensalão. Valério de fato ofereceu informações que interligavam os dois escândalos, mas sua proposta nem foi levada à frente. Os procuradores só não descartaram de imediato por acharem que o publicitário poderia indicar supostas contas secretas
de petistas no exterior.
Digitais do hacker
Desde que a Vaza-Jato jogou luz sobre os métodos de investigação de Moro e dos procuradores, a linha de defesa de todos eles é negar a autenticidade das mensagens hackeadas por Walter Delgatti e afirmar que, diante de um universo tão imenso de diálogos, é possível que algumas conversas tenham sido retiradas de contexto, adulteradas ou completamente inventadas. A dúvida é conveniente como estratégia jurídica — e perícias são conflitantes em assegurar a inviolabilidade do material. Ao analisar milhares de pastas armazenadas no computador de Deltan Dallagnol, por exemplo, VEJA encontrou algo no mínimo curioso: fotos do hacker foram salvas em pastas de imagens supostamente encontradas no computador do ex-chefe da Lava-Jato.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859