A Polícia Federal trabalha há quase cinco meses tentando montar o organograma da cadeia de responsabilidade pela invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro. Há muito ainda a ser esclarecido. Nas horas seguintes aos ataques, por exemplo, circulou entre um grupo de ministros do governo a informação de que fuzileiros navais, sob a batuta do Comando da Marinha, teriam planejado uma rebelião para impedir a posse do presidente Lula. O levante só não aconteceu porque teria havido divergências dentro das Forças Armadas, embora uma ala do Exército também encampasse a ideia. A data marcada para o tal golpe era 21 de dezembro. Isso explicaria o fato de a diplomação de Lula ter sido antecipada e a convicção do presidente e de seus principais auxiliares de que o país realmente esteve na iminência de uma quartelada. Jamais foi esclarecido se essa conspirata de fato aconteceu ou se foi um delírio de alguém para justificar certas medidas e fustigar a imagem dos militares.
Esse desafio, em tese, ganhou um reforço a mais com a instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que vai apurar os eventos do dia 8 de janeiro. Desde a última quinta, dezesseis deputados e dezesseis senadores se preparam para o que promete ser um duelo de grandes proporções. De um lado, os parlamentares governistas vão tentar demonstrar que os ataques aos prédios públicos foram uma etapa de um plano golpista armado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para solapar o poder. Já os oposicionistas pretendem ressalvar que a baderna contou com a participação de apoiadores radicais do ex-presidente — até porque não há como negar isso —, mas a destruição teria sido estimulada pelo próprio Planalto e executada por militantes petistas infiltrados. A versão oficial ainda carece de comprovação. A outra, pelo menos por enquanto, não encontra nenhum respaldo na realidade. O desafio da CPI será esclarecer se atos de vandalismo representaram apenas uma manifestação descontrolada de eleitores descontentes ou se havia, de fato, um plano golpista oculto.
Para avançar sobre essa segunda hipótese, a do golpe, é preciso buscar respostas no meio militar — e aí surge a fonte de preocupação. Na última semana, o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, acompanhado do líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu, teve um jantar com o presidente da comissão, Arthur Maia (União-BA). No encontro, eles pediram ao parlamentar para ter “responsabilidade” no tratamento com os militares. “O governo reconhece que a relação com as Forças Armadas não está boa e que não dá para esticar a corda, botar os militares na parede e jogar a CPI para cima deles”, resumiu um dos participantes. Uma CPI tem a prerrogativa de convocar, prender, fazer longas inquirições e vasculhar os sigilos fiscais, bancários e telefônicos de seus alvos. Passar por ao menos uma dessas etapas já representa um tremendo constrangimento.
Apesar de encampar a tese de que houve uma ação golpista, o Planalto se empenha em uma operação de contenção. Os governistas, inicialmente, não queriam a criação da CPI. Depois que ela se tornou inevitável, a ordem é mantê-la sob controle. A primeira medida nessa direção foi escolher os aliados mais moderados para compor a comissão. Não será uma tarefa simples. Os petistas querem enquadrar o ex-presidente Jair Bolsonaro como o “mentor intelectual” dos atos. Para isso, há uma lista de militares no entorno do ex-capitão que estão na mira. O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, é o alvo número 1. O militar está preso sob a suspeita de fraudar o cartão de vacinação de Bolsonaro e, no celular dele, foram encontradas mensagens em que outros militares, como o coronel Elcio Franco, ex-assessor da Casa Civil, defendiam um golpe militar. Generais da reserva, os ex-ministros Braga Netto e Augusto Heleno, conhecidos por questionar o sistema eleitoral, também estão no foco.
Pela oposição, o contra-ataque já está definido — e a munição a ser usada passa igualmente pelos quartéis. Amigo de longa data de Lula, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional general Gonçalves Dias acabou demitido após aparecerem imagens dele dentro do Planalto, ao lado dos vândalos, quando já estava tudo depredado. Além disso, é dada como certa a convocação do general Gustavo Dutra, ex-chefe do Comando Militar do Planalto, grupamento responsável pela segurança do Palácio do Planalto. Em depoimento à Polícia Federal, Dutra entregou trocas de mensagens que demonstraram que o GSI não pediu reforço na segurança nem mesmo quando as invasões já estavam acontecendo e ainda envolveu o presidente nas negociações sobre o acampamento em frente ao quartel-general, relatando que Lula deu aval para a retirada do grupo apenas no dia seguinte ao vandalismo.
Demitido pelo presidente treze dias após os atentados, o ex-comandante do Exército Júlio César de Arruda é outra peça-chave para detalhar as negociações com o Executivo. Considerado um insubordinado, Arruda negou o pedido do governo de barrar a promoção do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, já acertada quase um ano antes, e também se negou a autorizar a entrada da Polícia Militar para desmobilizar o acampamento na noite do dia 8, chegando a posicionar veículos blindados na entrada da região militar. A CPI tem previsão de durar até seis meses — período que pode ser prorrogado —, mas governistas passaram a defender um trabalho enxuto e célere, justamente para evitar o prolongamento dos danos do colegiado. A estratégia, porém, pode esbarrar em mais um problema do outro lado da Esplanada. Parlamentares governistas e de oposição se mobilizam para pedir ao ministro Alexandre de Moraes acesso aos inquéritos sigiloso sobre os atos antidemocráticos.
De um lado, aliados do Planalto querem a documentação para jogar luz sobre eventuais provas contra Bolsonaro e seus apoiadores, enquanto os oposicionistas dizem não haver elementos fáticos que alcancem o ex-presidente e, dessa maneira, tentam minimizar a investigação do Supremo Tribunal Federal. Os dois grupos acreditam que será baixa a disposição de Moraes em compartilhar os dados. Na última terça-feira, 23, em uma amostra do que uma CPI em tempos de polarização é capaz de produzir, foram abertos os trabalhos da comissão destinada a investigar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), grupo historicamente ligado à esquerda e ao PT. Sob o comando de deputados de oposição ao governo Lula, a sessão foi recheada de gritos, xingamentos, críticas ao governo e ameaças — um indicativo de que pode até ter investigação, mas não vão faltar barulho e muita confusão em ambas as CPIs.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843