Desde que as manchas de óleo apareceram no litoral do Nordeste, há pouco mais de dois meses, alastrando-se da porção norte, no Maranhão, ao sul, na Bahia, os cientistas, ambientalistas e profissionais de turismo trabalhavam mentalmente com uma possibilidade que representaria um novo e doloroso marco — a chegada da sujeira negra à margem do Arquipélago de Abrolhos, formado por cinco ilhas que abrigam a mais extensa bancada de corais do Brasil e do Atlântico Sul, berço de 1 300 espécies, refúgio de tartarugas marinhas e baleias jubarte. Esse dia, o dos borrões a lamber Abrolhos, chegou, e nas próximas semanas as areias da região poderão ser tingidas de marcas escuras. Não se sabe, ao certo, a dimensão do estrago — mas ele virá. Disse a professora Zelinda Leão, do Instituto de Geociência da Universidade Federal da Bahia, que desde os anos 1970 escruta aquele éden, numa frase que se espalhou como testemunho da fase da tragédia: “Tudo o que vimos até agora é triste e preocupante, mas nada poderia ser pior do que isso chegar lá”. Isso, o petróleo derramado, possivelmente vindo de campos de extração da Venezuela, origem que ainda está sendo investigada.
Houve reação demorada e confusa do governo, e apenas em 5 de outubro, mais de um mês depois do alerta, é que o Ministério do Meio Ambiente acionou a Polícia Federal, a Marinha e os órgãos de controle para investigar as causas do acidente e procurar conter os danos. Tarde demais, talvez. Agora, tenta-se medir o prejuízo do ponto de vista da saúde da população, da pesca e, com a aproximação das férias, da freada para o turismo, e nesse aspecto Abrolhos é o ícone que não poderia ser atingido, ao lado de outras duas praias muito renomadas, a dos Carneiros, em Pernambuco, e a de Morro de São Paulo, na Bahia.
“Fomos contaminados pelo medo”, diz a paraibana Christiane Teixeira, sócia da operadora Luck Receptivo, que atua em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e nos municípios baianos de Salvador e Morro de São Paulo. “Quem ainda está decidindo as férias de janeiro já começou a desistir. Teremos uma queda entre 10% e 20%”, estima Christiane. O italiano Luigi Rotunno, fundador do La Torre Resort, em Porto Seguro, faz eco: “O óleo nem chegou aqui, mas as pessoas pensam que a Bahia inteira foi contaminada. Quem estava negociando a estada para o veraneio tomou outras rotas”. Não é possível, ainda, ter a dimensão exata das perdas econômicas no conjunto do litoral nordestino, afirma a Associação Brasileira de Agências de Viagens. Mas a incerteza provoca ondas incontestáveis de receio.
A insegurança impõe uma questão: quem já comprou pacote em agência teria o direito de cancelar, sem multa? Para as instituições de defesa dos direitos dos consumidores do Nordeste, a devolução pode ser indevida, porque nem todas as praias foram afetadas e é difícil determinar os estragos reais dos pontos alcançados pelo petróleo. O Procon de São Paulo, no primeiro momento, teve outro entendimento. Segundo o órgão paulista, os insatisfeitos poderiam cancelar ou remarcar viagens, sem custos extras. Em meio a esse diz que diz, há um único consenso: a busca de entendimento direto entre as duas partes, vendedores e compradores.
As repercussões para a rede hoteleira e de restaurantes foi golpeada na semana passada por outra notícia: o Ministério da Agricultura inicialmente proibiu a pesca de lagosta e camarão nos trechos atingidos (dois dias depois voltou a liberá-la). De acordo com análise coordenada pelo biólogo Mauro de Melo Júnior, o óleo se fragmentou em micropartículas, da mesma forma como acontece com o plástico, e pode entrar na cadeia alimentar. “Os animais não têm a capacidade de selecionar as partículas que ingerem e podem estar se contaminando”, disse. É grande o risco de haver escassez de pescado para o consumo, e consequentemente a quebra dos produtores e o afastamento dos turistas.
O futuro breve não é promissor, com hipóteses desconexas, em permanente confronto da União com os governos estaduais (leia o artigo de Marina Silva). Perdeu-se tempo com acusações contra a Venezuela, uma possibilidade, e o Greenpeace, injustamente acusado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Diz o oceanógrafo Fernando Barreto, pesquisador do Inpe: “No começo, as suspeitas eram que o vazamento tivesse acontecido por uma fonte, e cessado”. Agora, investiga-se outra possibilidade: um escoamento contínuo no fundo do oceano, quem sabe na porção profunda do pré-sal. Na quinta-feira 31, a Marinha trabalhava com uma hipótese de derramamento a partir de um navio irregular de bandeira liberiana, embora o vice-presidente Hamilton Mourão dissesse o contrário, apontando o dedo para uma embarcação regular. Em resumo, há mais dúvidas que certezas.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659