As causas e os estragos da pior crise de imagem internacional do Brasil
O fracasso no combate à pandemia e as ameaças às instituições e ao meio ambiente evidenciam ao mundo o desgoverno do país
O Brasil encontra-se à beira de um lockdown diante da comunidade internacional. O estado de isolamento agudo daquele que seria o país do futuro está materializado na balbúrdia do presente por uma conjunção de catástrofes, a começar pela tragédia humanitária nacional, com a liderança mundial de mortes diárias por Covid-19 (rumando firme para a casa de 30 000 óbitos). Em vez das doses cavalares de prudência, de organização e de responsabilidade adotadas pela esmagadora maioria do planeta como remédios para conter a doença, por aqui o caminho foi apostar na improvisação, na negação da ciência e no desprezo à gravidade do problema. Na esteira do estrago do coronavírus vieram o agravamento da crise política, a queda acelerada rumo ao fundo do poço da recessão, o aumento dos insultos às instituições, as novas ameaças ao meio ambiente e a exacerbação de discursos e gestos autoritários, com direito a um flerte explícito com o militarismo. Em meio ao caos, “Bolsonero”, um dos vários apelidos criados recentemente por veículos de imprensa da Europa e dos Estados Unidos para classificar a postura do presidente, vai aumentando o volume de seu mantra de chamar a população de volta às ruas e de procurar inimigos por todos os cantos, boa parte deles imaginários, a fim de responsabilizá-los pela situação. Para mostrar que não teme a “gripezinha” e estimular as pessoas a fazer o mesmo, o capitão não perde a oportunidade de se expor sem os devidos cuidados, e em uma das últimas aparições sem a proteção da redoma do séquito bolsonarista foi saudado com panelaços e gritos de “assassino” enquanto degustava um cachorro-quente em Brasília.
Esse flerte irracional com o perigo parece cada vez mais indigesto e incompreensível aos olhares estrangeiros. Não bastasse provocar ondas permanentes de espanto e de preocupação pelo estado de desgoverno até entre os vizinhos mais pobres da América do Sul, o país passa a sofrer as inevitáveis consequências econômicas por causa dessa política confusa em um mundo globalizado. São inúmeros os indicadores que comprovam como a instabilidade afugenta o capital, o que só agrava a situação do momento. O real se tornou uma moeda tóxica, com desvalorização de aproximadamente 30% em relação ao dólar neste ano. Segundo o Banco Central, investidores estrangeiros retiraram daqui 31,4 bilhões de dólares de aplicações financeiras entre janeiro e abril, enquanto a entrada de investimentos diretos despencou de 5,1 bilhões de dólares em abril de 2019 para insignificantes 234 milhões no último mês. Em sinal de alerta, a agência Fitch rebaixou a perspectiva da nota de crédito do país de neutra para negativa. “O Brasil se tornou um pária internacional”, disse a VEJA o historiador e brasilianista britânico Kenneth Maxwell. “Uma situação que foi amplificada pelo comportamento irresponsável de Bolsonaro.”
Uma crise econômica no período pós-pandemia seria inevitável. A Alemanha, considerada um dos modelos no enfrentamento da doença, entrou nesta semana em recessão técnica, após as quedas no consumo e nas exportações derrubarem o PIB do primeiro trimestre em 2,2%. Para o Brasil, as consequências tendem a ser piores. O Instituto Internacional de Finanças revisou recentemente a previsão de queda do PIB para 6,9% em 2020. No campo político, Bolsonaro se equiparou aos ditadores de Nicarágua, Turcomenistão e Bielorrússia ao negar a gravidade da Covid-19. Também rodou o mundo a irrestrita defesa que fez ao uso da cloroquina, sem que houvesse comprovação científica, e as brigas que comprou com governadores e prefeitos que aplicavam medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. “Hoje, a nação é sinônimo de tragédia”, afirma o brasilianista Jeffrey Lesser, diretor do Instituto Halle de Pesquisa Global da Universidade Emory, nos Estados Unidos. “O país se tornou um problema sanitário e econômico global.”
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Clique e AssineUm exemplo concreto da perda de reputação com a crise do coronavírus é a recente proibição que os Estados Unidos impuseram a todos os voos vindos do Brasil. “Não quero pessoas infectando meu povo”, disse Donald Trump, considerado por Bolsonaro um aliado de primeira hora, ao explicar por que cogitava impedir a entrada de brasileiros. No pior dos cenários, tendo em conta o aprofundamento de seu atual grau de isolamento pelas grandes nações e pelos blocos econômicos, o país teria de lidar com a suspensão de voos, a proibição do tráfego marítimo e o bloqueio à entrada de produtos em importantes mercados, como os Estados Unidos, a China e a União Europeia. Para o cientista político chileno Jorge Heine, professor da Universidade de Boston e um dos autores do Manual da Diplomacia Moderna de Oxford, o Brasil atropela dois pré-requisitos imprescindíveis nas relações internacionais: credibilidade e previsibilidade. “O país as tinha de sobra, mas isso não ocorre mais”, afirma o estudioso. Desde 2019, prossegue o especialista, o Brasil alcançou a rara posição em que conseguiu antagonizar praticamente com o mundo inteiro. “A comunidade internacional está horrorizada com o presidente dizendo ‘e daí?’ enquanto o país conta dezenas de milhares de mortos”, diz Heine. “Será preciso um enorme esforço para restaurar a posição que o Brasil um dia teve no mundo.”
Se há características que certamente não fazem parte do governo Bolsonaro, elas são “credibilidade e previsibilidade”. No último dia 22, o ministro do STF Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente ameaça interferir na pasta da Justiça para proteger familiares e amigos de investigações. Além do disparate autoritário, a filmagem de quase duas horas mostra o presidente e seus ministros sem que haja qualquer filtro. O jornal britânico The Guardian dedicou um texto só para os 34 palavrões que Bolsonaro disse na reunião. Pior: o mundo pôde ver o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pedindo a prisão dos ministros do STF, assim como o fez a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, em relação a governadores e prefeitos. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a pôr fogo nas preocupações internacionais com a preservação da Amazônia ao dizer que o governo deveria aproveitar a distração da imprensa com a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”, alterando regramentos e flexibilizando normas. O resultado só não foi mais desastroso porque Celso de Mello omitiu os ataques que o ministro da Economia, Paulo Guedes, dirigiu à China, o principal parceiro comercial do Brasil.
O vídeo da reunião ministerial provocou estrago significativo na imagem do governo brasileiro no exterior. O jornal britânico conservador Financial Times, tido como a bíblia do mercado financeiro, veiculou, na segunda 25, uma coluna com o seguinte título: “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o país ao desastre”. O presidente deu de ombros, classificando a imprensa internacional como “de esquerda”. A tática do confronto também foi adotada pelo chanceler Ernesto Araújo, que já chamou a pandemia de “comunavírus” e varreu do Itamaraty quadros renomados que não comungam de sua pregação. Alinhado a essa visão estreita, Luís Fernando Serra, embaixador na França, emitiu no dia 19 uma carta criticando a direção do Le Monde, a quem ele acusou de inventar ficções quando o jornal francês publicou um editorial devastador sobre a insensatez de Bolsonaro no combate ao coronavírus.
No jargão diplomático, o recorde de desatinos dos últimos tempos fez o Brasil queimar seu capital de soft power, como se define a habilidade de uma nação ter o que quer por meio da atração em vez da coerção. “Tradicionalmente, o Brasil tinha um soft power que emanava de sua reputação por políticas competentes e progressistas”, diz Joseph Nye, idealizador desse conceito e professor emérito da Harvard. “Essa imagem se perdeu com a forma como Bolsonaro lida com a pandemia.” As consequências já são sentidas no alijamento de representatividade da nação nos organismos multilaterais. Bolsonaro não participou da reunião entre os presidentes da América do Sul para tratar do combate à Covid-19 e ficou de fora de uma força-tarefa mundial para acelerar a produção de uma vacina para a doença. Entre diplomatas e especialistas em comércio exterior, corre a versão de que a renúncia de Roberto Azevêdo à direção da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi motivada pela incapacidade de domar os desvarios do governo brasileiro na área de relações exteriores e pela iminência de sanções contra o país. A rigor, o Brasil tem hoje apenas uma posição de liderança entre entidades do primeiro time global: José Sette, na direção da Organização Internacional do Café.
Não é a primeira vez que o Brasil é posto de lado pela comunidade internacional. Na década de 70, na ditadura militar, o país sofreu com o isolamento em razão das violações dos direitos humanos, tendo como auge o tenebroso período do AI-5 durante o governo Médici (aliás, uma época incensada por Bolsonaro). Mas, para Rubens Barbosa, que foi embaixador de 1999 a 2004 nos Estados Unidos, há uma grande diferença entre o isolamento da época do período militar e o momento atual. “Antes, a sanção era só política. Agora, também é econômico-comercial”, compara.
A preservação do meio ambiente é uma das questões com maior potencial para gerar novos prejuízos. Em 2019, as cenas de desmatamento da Amazônia e a postura tíbia do governo diante do problema já haviam provocado uma crise internacional. O alerta voltou a ser aceso com as palavras de Ricardo Salles no tristemente célebre encontro de 22 de abril e a aproximação da temporada seca, quando o volume de queimadas costuma explodir. “Naquela reunião minha manifestação não tinha nada a ver com a Amazônia. Eu estava me referindo a normas infralegais, abaixo das leis. Reitero: estava falando de todos os ministérios”, afirmou a VEJA Salles. “Dito isso, defendo que, se não avançarmos na regulação fundiária da região, não adianta políticas de comando e controle. A fiscalização tem efeito limitado, é difícil cobrir um território que equivale a dezesseis países da Europa”, completa. Representa mesmo um desafio proteger uma porção de terra tão vasta, mas é fato também que o Ministério do Meio Ambiente não tem colaborado muito com o trabalho, punindo agentes do Ibama que aplicam corretamente as leis contra madeireiros e garimpeiros ilegais, entre outras barbaridades. Mesmo com o foco na pandemia, os governos europeus andam atentos à forma como o país trata essa área. Está prevista para o meio deste ano a assinatura do acordo do Mercosul com a União Europeia, que tem um capítulo inteiro dedicado ao cumprimento de acordos ambientais que vão desde a redução na emissão de carbono à preservação da Amazônia. “O governo brasileiro está avançando com sua política de expansão de atividades econômicas e comerciais predatórias na Amazônia”, escreveu a deputada portuguesa Isabel Santos, que entrou com uma representação no Parlamento Europeu que pede investigações sobre a atuação brasileira na região.
A imagem de um governo caótico também é um espantalho para a captação de negócios para o Brasil, sobretudo em um momento em que empresas estão repensando as suas operações e cortando gastos no mundo todo. “O investidor pensa: vou colocar o meu dinheiro em outro país, que até pode ter risco e oportunidades semelhantes, mas sem os problemas de gestão do Brasil”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. VEJA conversou com executivos de três gigantes multinacionais do setor químico, automotivo e de vestuário. O sentimento é desesperador. Todos relataram não ter mais margem para fazer demandas às matrizes, seja para trazer novas linhas de produção, seja para pedir o capital necessário para manter saudáveis os caixas das sedes no Brasil. As matrizes orientam os executivos para que busquem fundos localmente, porque a prioridade é salvar outras operações ao redor do mundo. Os motivos elencados são o somatório de ruídos graves e constantes vindos do presidente, o confronto permanente entre os poderes, a perspectiva de uma crise maior do que em outros países e a projeção de uma retomada econômica mais lenta do que em outras localidades. “Quando se faz uma política externa ornamentada ideologicamente e atrelada a indivíduos, o cenário que se desenha é catastrófico”, diz o cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard.
Mesmo diante de uma situação tão crítica, é possível ainda evitar o pior? A firmeza de instituições como o STF diante dos arroubos autoritários e o potencial represado do Brasil dão sinais de que nem tudo está perdido. Um exemplo dessa capacidade de resiliência é o agronegócio. Desde o início do ano passado, o país abriu 48 mercados para produtos do setor rural nacional. Trata-se de um feito impressionante, pois parte dele ocorreu durante a escalada mundial da pandemia e em meio às constantes caneladas do governo no maior cliente, a China. “A boa notícia é que, com mudanças de administração ou de políticas, os países podem recuperar sua reputação com o passar do tempo”, diz Joseph Nye. De fato, há tempo para transformações enquanto as agências de classificação não cogitam pôr o país no clube dos inadimplentes. Antes da pandemia, a expectativa era de que o Brasil retomasse o grau de investimento em 2022. A hipótese, agora, beira a zero, mas não cair para o nível de calote já é alguma coisa. Economistas mais otimistas ainda veem uma janela de oportunidades com a profunda crise econômica para consertar gargalos antigos do Brasil, como os setores de infraestrutura e de tecnologia. Eles citam a tese da “destruição criativa”, do austríaco Joseph Schumpeter, que se propõe a explicar alterações bruscas no capitalismo. Se por um lado a inovação cria outras opções de emprego e atividades, por outro ela também torna obsoletas modalidades antigas. “É a característica desta era e temos de permitir que essa destruição promova produtividade e eficiência”, afirma Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). É um chamamento para o governo Bolsonaro recobrar a lucidez e a razão. Há um enorme trabalho pela frente para recuperar o estrago feito até aqui.
Com reportagem de Victor Irajá e Jennifer Ann Thomas
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689