Um ano e três meses antes de o governo federal declarar, no último dia 20, emergência de saúde pública na Terra Indígena Yanomami, a maior do país, procuradores do Ministério Público Federal alertaram a gestão Jair Bolsonaro e pediram providências sobre a crise humanitária que se desenhava na área, com o aumento rápido de mortes de crianças, desnutrição e malária — tudo agravado pela presença recorde de garimpeiros. No ofício enviado em novembro de 2021 ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, o MPF mostrava que a taxa de mortalidade infantil saltara de 88 por 1 000 nascimentos, em 2019, para 133,3 dois anos depois — dez vezes o índice do país (13,3). Entre as crianças monitoradas, 52% estavam desnutridas, chegando a 80% em algumas áreas. Foi o primeiro grande alerta de um órgão oficial sobre a crise, que se somou a uma série de medidas contra Bolsonaro na Justiça brasileira e em organismos internacionais (veja o quadro abaixo) que já indicavam que havia algo de errado no extremo norte da Amazônia.
De quase nada bastaram os avisos. Nem sequer as decisões judiciais recorrentes favoráveis aos indígenas foram cumpridas. Desde 2020, por exemplo, há ordem para reinstalar três Bases de Proteção Etnoambiental, criadas entre 2011 e 2013 e desativadas nos anos seguintes. Elas dificultavam a passagem de garimpeiros — há 20 000 invasores na área, segundo o MPF. O governo chegou a criar um cronograma para reabrir os postos até outubro de 2022, mas o último deles segue desativado, justamente em uma área de avanço crítico dos criminosos e com episódios de violência contra ianomâmis. A Funai alegou “crônica limitação orçamentária e de pessoal”.
Os responsáveis pela crescente expansão do garimpo, que quase triplicou sob Bolsonaro, também não tiveram com que se preocupar. Desde 2020, há decisões da Justiça Federal para que eles sejam retirados, mas mesmo operações pontuais iniciadas em 2021 acabaram abandonadas no ano seguinte. As ações tinham ciclo operacional curto, de cerca de dez dias, o que permitia o retorno depois que a repressão ia embora. “Eram operações feitas para não funcionar”, diz Alisson Marugal, procurador da República em Boa Vista. Em 2022, técnicos do Ibama elaboraram um plano para ocupar a TI Yanomami com forças de segurança por seis meses, tempo suficiente para asfixiar os negócios ilegais, mas a ideia nunca foi posta em prática. Procuradores também ficaram espantados com a existência de um pelotão do Exército a poucos quilômetros de um garimpo ilegal. Os soldados assistem à movimentação dos invasores sem fazer nada, por falta de ordens do comando em Brasília. Em audiências, militares deixavam claro que só atuariam contra os invasores por decisão judicial.
A expansão da atividade garimpeira sob o governo Bolsonaro está intimamente ligada à emergência de saúde pública e à subnutrição que atinge os ianomâmis. As invasões agravaram de forma inédita problemas que esse povo vinha enfrentando, em menor escala, desde os anos 1990, quando a terra indígena foi criada. O impacto ocorre de várias maneiras. Quando o garimpo chega, parte dos indígenas é cooptada para trabalhar, abandona o cultivo na roça e passa a consumir alimentos vendidos pelos garimpeiros. Além disso, a atividade polui os rios com mercúrio, acaba com a pesca e afugenta os animais. E, por fim, há a transmissão de doenças — no ano passado houve 11 000 casos de malária. Mesmo assim, Bolsonaro sempre foi entusiasta da mineração. Em 2021, durante visita a um garimpo ilegal em outra terra indígena de Roraima, ele defendeu projeto para liberar a atividade — discurso que nenhum outro presidente havia adotado.
Mas houve outros fatores que colaboraram, mesmo que lateralmente, para a tragédia. A região sofreu com excesso de chuvas, que ocasionaram a perda das lavouras. Em situações como essa, caberia à Funai distribuir cestas básicas às comunidades, mas, desmantelado nos últimos anos, o órgão está totalmente ausente de algumas áreas. “Talvez propositalmente, o trabalho da Funai foi se enfraquecendo, com o fechamento de postos de fiscalização e falta de investimento”, afirma a deputada Joênia Wapichana, que assumirá o comando do órgão em fevereiro. Para piorar, os procuradores descobriram no ano passado um esquema de corrupção que desviou dinheiro de medicamentos destinados aos ianomâmis. As fraudes envolveram 3 milhões de reais e há suspeitas de participação de servidores do Ministério da Saúde. Com o avanço da investigação, a entrega de remédios ficou suspensa e houve desabastecimento. Em consequência disso, a malária e as verminoses ganharam força, atingiram pessoas subnutridas e causaram mortes que seriam evitáveis. Nos últimos quatro anos, 570 crianças morreram. Na semana que passou, ao menos oito foram resgatadas com desnutrição crônica e levadas a Boa Vista, onde o novo secretário nacional de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, quer implantar um hospital de campanha. A Casai (Casa do Índio), para onde os ianomâmis estão sendo levados, comporta 200 pacientes, mas tem mais de 700. “É um cenário de guerra”, conta.
A comoção causada por imagens de indígenas desnutridos, que chocaram o Brasil e correram mundo, acabou acelerando a “desbolsonarização” da Funai e de órgãos de saúde pelo governo Lula, que fez demissões em massa na terça 24. Também abriu espaço para o petista avançar com promessas de campanha, como expulsar garimpeiros de áreas indígenas e retomar as demarcações. A mando do ministro da Justiça, Flávio Dino, a PF abriu inquérito para investigar possível crime de genocídio. Os alvos iniciais serão servidores que atuavam diretamente com ianomâmis, mas o caso pode chegar a ex-ministros e até ao ex-presidente — que até agora limitou-se a dizer no Telegram que a crise, revelada após visita de Lula à região no sábado 21, era uma “farsa da esquerda”. O objetivo da PF será comprovar se houve intenção de exterminar povos tradicionais por meio de ações ou omissões de agentes públicos. Ao mesmo tempo, Bolsonaro passa pelo escrutínio de órgãos como o Tribunal Penal Internacional, em Haia, que recebeu denúncias de entidades civis apontando crimes contra a humanidade e genocídio. A Corte somente vai atuar se as instituições brasileiras falharem na missão de investigar e punir os responsáveis — o que o país certamente espera que não aconteça.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826