Governar um país como o Brasil não é fácil. Exige liderança, capacidade de execução e também de negociação, habilidade vital para a construção de uma maioria parlamentar. Ao investir sobre o Centrão, o célebre grupo de partidos versados no fisiologismo político, o governo de Jair Bolsonaro procura, pela primeira vez desde a posse, dar um mínimo de consistência a sua base no Congresso e, de quebra, evitar que prospere alguma tentativa de cassar seu mandato. Embora o movimento seja correto do ponto de vista da governabilidade, algo vital neste momento tão conturbado, a estratégia traz riscos e alguns efeitos colaterais perigosos. Um deles é acuar o presidente da Casa, Rodrigo Maia, que vê na movimentação uma ameaça à ideia de reeleição (detalhe: cabe a ele decidir se dará ou não andamento aos mais de trinta pedidos de impeachment que já estão em sua mesa). Outro potencial revés é bombardear a agenda do ministro da Economia, Paulo Guedes, ao abrir espaço para a aprovação de pautas que vão ampliar a gastança pública e enterrar qualquer política liberal e de austeridade fiscal.
Agradar ao Centrão é uma atividade que exige um equilíbrio delicado. Ao mesmo tempo que ela proporciona conforto, pode tirar totalmente o rumo de um governo. Um exemplo do que faz brilhar os olhos de alguns integrantes do Centrão é o Plano Pró-Brasil, articulado à revelia de Guedes pelos ministros Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, para reativar a economia com uma combinação de expansão do gasto público e investimentos privados (será que eles virão?) em obras de infraestrutura. Outra medida de interesse do bloco com potencial para deixar o titular da Economia com os cabelos em desalinho é tornar permanente o auxílio emergencial de 600 reais pago durante a crise do coronavírus, cuja previsão estimada de gastos é de 124 bilhões de reais em três meses. Parlamentares do bloco também dão de barato a derrubada do veto anunciado pelo Executivo ao reajuste salarial para servidores públicos, aprovado após orientação do próprio presidente, como revelou o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO) — o que irritou profundamente Guedes e forçou Bolsonaro a dizer que vetaria a ideia.
Além de precisar refrear os interesses dos novos aliados de forma a não melindrar o seu “Posto Ipiranga”, o presidente terá de administrar a reacomodação das placas tectônicas na Câmara provocadas por seu movimento rumo ao Centrão. A investida pode afastar, por exemplo, aliados como o Novo (a sigla vota a favor de propostas do Executivo). Em contrapartida, rachou o grupo de deputados que se aglutinavam em torno de Maia, uma boa notícia para Bolsonaro. Alijado pelo governo da função de intermediador de cargos e emendas, Maia já não controla a maioria dos expoentes do Centrão, que hoje negociam diretamente com o Planalto e se articulam para ocupar sua cadeira em 2021, especialmente os deputados Arthur Lira (Progressistas-AL) e Marcos Pereira (Republicanos-SP) — ambos ambicionam o apoio do governo.
Maia, de fato, foi eleito o grande inimigo de Bolsonaro. Com a meta de ampliar seu isolamento, o presidente se reuniu até com os presidentes do MDB, o deputado Baleia Rossi (SP), e do DEM, o prefeito de Salvador, ACM Neto, no fim de abril. A investida não obteve muito sucesso. O MDB tem os líderes do governo no Congresso e no Senado, e o DEM, os ministros Onyx Lorenzoni (Cidadania) e Tereza Cristina (Agricultura), mas as duas legendas avaliam as indicações como pessoais do presidente e não demonstram interesse numa composição agora. Para o cientista político Fernando Schüler, do Insper, talvez Bolsonaro tenha de se conformar com uma base mais sólida, mas não exatamente com uma maioria. “Não parece que o governo vá buscar formar uma coalizão, e sim um meio-termo, que lhe dê alguma segurança no Congresso e, quem sabe, possa influir na eleição da mesa diretora da Câmara. Mais que isso, não.”
É difícil fazer qualquer prognóstico sobre o sucesso do “bolsocentrão” a médio prazo. Por mais que alguns cargos tenham sido liberados para o grupo fisiológico, como a direção do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) e a Secretaria Nacional de Mobilidade, as nomeações ainda estão longe de atender ao apetite da turma, acostumada a emplacar ministros e ter à disposição polpudos orçamentos. “Distribuir posições só de segundo e de terceiro escalão pode não ser a melhor indicação do governo aos partidos”, diz um deputado do bloco. “O nível de desconfiança é muito grande e a avaliação não é positiva. Se o governo entrega rápido (os cargos), é porque sua disposição é plena. Se começa a demorar, é porque não quer entregar. São sinais muito importantes na política”, afirma um político do PP. E pode piorar. Além de considerar seu instinto de sobrevivência, o Centrão cobra de acordo com o fardo que terá de carregar. E a evolução da crise do governo na última semana mostra que o equilíbrio ainda é um sonho distante.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687