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Agonia pública

A morte de um modelo de 25 anos que teve um mal súbito na passarela choca o país e o mundo — e vira uma dolorosa metáfora do universo da moda brasileira

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 Maio 2019, 07h00 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00

O modelo mineiro Tales Cotta, de 25 anos, vivia um ótimo momento profissional. Contratado para desfilar em sua segunda temporada na São Paulo Fashion Week (SPFW), embarcaria para Milão nos próximos meses, o primeiro passo da sonhada carreira internacional. Antes disso, tinha fechado contrato para fotografar a campanha publicitária de uma montadora de automóveis. Tudo corria bem, até as 17h20 do sábado 27. Enquanto desfilava pela Ocksa, grife estreante na maior semana de moda do Brasil, sofreu um mal súbito em plena passarela. Caiu no chão. Uma parte da plateia se espantou, outra achou que a queda fazia parte de uma performance.

Nem os colegas de passarela entenderam direito. Não havia no roteiro nenhuma performance, mas, na dúvida, continuaram a apresentação — até que apareceu um socorrista. Cotta foi retirado de maca. Em tempos de redes sociais, os primeiros atendimentos foram filmados e postados ao vivo. O desfile foi interrompido, mas recomeçou três minutos após a retirada do modelo. Ninguém sabia da gravidade do caso de Cotta e, com a confirmação de sua morte no hospital menos de duas horas depois, os donos da grife pediram desculpas por terem retomado o desfile. A própria mãe de Cotta, Heloísa Cotta, disse que compreendia o reinício do evento.

O Instituto Médico-Legal de São Paulo colheu sangue e tecidos para investigar a causa da morte. O resultado fica pronto em até noventa dias. Formado em educação física, Cotta era um ativista da alimentação vegetariana e da prática de esportes, adepto de cross fit e ioga. Amigos e familiares são unânimes em dizer que ele era avesso às drogas. O colapso foi, portanto, surpreendente e chamou a atenção do país — e do mundo. A morte do modelo saiu em diversos jornais. Seu perfil no Instagram passou, em apenas quatro dias depois do seu falecimento, de 10  000 para 43 000 seguidores.

REAÇÃO – Há mais seguidores de Tales Cotta no Instagram após a tragédia (./.)

No circuito mais conhecido da moda internacional — em Nova York, Milão ou Paris — não se tem notícia de um caso como o de Cotta, mas as tragédias provocadas por anorexia fizeram muitas vítimas. Em 2006, a modelo uruguaia Luisel Ramos, então com 22 anos, morreu no camarim da Semana de Moda de Madri, depois de voltar da passarela. Com anorexia, ela teve um ataque cardíaco. No mesmo ano, em agosto, morreu a modelo brasileira Ana Carolina Reston. Estava internada em razão de uma anorexia nervosa. Tinha 21 anos, 1,74 metro e 40 quilos. No caso de Cotta, apesar do absoluto imprevisto, a ajuda não demorou. O primeiro socorrista levou vinte segundos para subir à passarela para atendê-lo. Mas a morte do modelo, com o corpo estendido no chão, numa imagem que percorreu o mundo, acaba sendo uma dolorosa metáfora do atual momento da moda brasileira, com o contínuo esvaziamento da SPFW.

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Nesta edição, grifes fortes como Osklen e Água de Coco nem participaram dos desfiles. Seguiram o exemplo de marcas como À La Garçonne, Colcci, Forum e Animale, que abandonaram a semana da moda em edições anteriores. O evento nada mais é que um reflexo — opaco e puído — do estado atual do mercado. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o ano de 2018 foi um tear de notícias ruins: houve 2,9% de retração na produção e 2,2% de diminuição das exportações. Ao todo, 27 233 vagas de trabalho formal foram fechadas. No Brasil, há boas alternativas. O uso de novas tecnologias se espalha. A moda praia é mundialmente respeitada e bem remunerada. Mas as más notícias são mais abundantes. “Parte da crise se deve ao fato de que as empresas não acompanham os desejos da sociedade”, diz a jornalista e curadora Alexandra Farah. “O jovem não quer apenas roupa nova, quer mesmo saber de onde ela vem.” Quer, enfim, conhecer a origem da matéria-­prima e assegurar-se de não ter havido trabalho infantil ou trabalho escravo. O trágico fim de Tales Cotta, com todo o rastro de dor que acompanha uma morte tão precoce, é mais que uma notícia ruim no universo da moda brasileira.

Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

 

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