Ação no STF pode suspender acordos de leniência com impacto de R$ 30 bi
ADPF protocolada por PSOL, PCdoB e Solidariedade está nas mãos do ministro André Mendonça, mas decisão deve ir a plenário; CGU é contrária
Mais acordos de leniência firmados durante o período da Lava-Jato correm o risco de ser revistos, para além da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, que anulou as provas obtidas com a Odebrecht. Os compromissos fechados desde 2015 por empresas envolvidas em casos de corrupção, um dos últimos pilares da operação que resistia, são também alvos de um amplo pedido de revisão na Suprema Corte por abuso nas negociações. A ação, protocolada em março por três partidos — PSOL, PCdoB e Solidariedade — pede a suspensão, para que sejam revisados os acordos feitos até agosto de 2020, o que pode ter impacto de mais de R$ 30 bilhões.
Em meio à explosão nos casos de desvios deflagrada durante a operação, os acordos foram a maneira encontrada para manter os negócios ativos e, ao mesmo tempo, ressarcir a União dos danos provocados até ali. Para isso, a iniciativa deveria partir das empresas que, ao reconhecerem a corrupção praticada, se colocavam à disposição para colaborar com a Justiça e negociavam responsabilidades, como a instalação de programas de compliance e o pagamento de multas bilionárias. Por outro lado, recebiam benefícios, como a possibilidade de seguir concorrendo em editais públicos.
Desde então, foram firmados 48 acordos decorrentes da Lava-Jato e de operações correlatas, por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) ou da Controladoria-Geral da União (CGU) junto à Advocacia-Geral da União (AGU), com multas que somam cerca de R$ 38,5 bilhões. Nos últimos anos, contudo, a operação tem sido alvo de contestações, em meio a delações anuladas na Justiça e a abusos apontados especialmente nas figuras do ex-juiz e hoje senador Sergio Moro (União), e do então procurador da República Deltan Dallagnol, o principal condutor das investigações à época, no MPF.
Foi com base nisso que PSOL, PCdoB e Solidariedade ajuizaram, em março deste ano, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1051 no STF. O objetivo é suspender e revisar as obrigações pecuniárias — ou seja, as multas — de todos os acordos de leniência celebrados até agosto de 2020. A ação também pede que o Supremo fixe uma espécie de modelo ideal para a realização dos acordos, que garanta a participação da CGU como “proponente ou órgão de controle”.
As legendas argumentam que, até essa data, os acordos foram pactuados em um cenário político e jurídico desproporcional às corporações, e “mediante situação de coação”. Esse marco temporal é levado em conta porque no dia 6 de agosto de 2020 o Tribunal de Contas da União (TCU), a CGU, a AGU e o Ministério da Justiça assinaram um acordo de cooperação técnica (ACT), que organizava a partir de então a atuação do poder público ao firmar as leniências. O MPF, apesar de convidado, disse que havia interesse em assinar, mas não compareceu no dia da cerimônia.
Um dos advogados responsáveis pela ADPF, Walfrido Warde defende que “é possível depurar as empresas de uma cultura de corrupção sem destruí-las. Sem acabar com empregos, com arrecadação, com conteúdo nacional e com a competitividade no país”. Se validada pelo STF, a ação poderia suspender as multas de cerca de 40 acordos firmados tanto pelo MPF, quanto pela CGU, que totalizam em torno de R$ 36 bilhões. Parte desse valor já está nos cofres públicos: no caso daqueles conduzidos pela Controladoria-Geral da União, que dá mais transparência ao status de cada compromisso, já foram pagos aproximadamente R$ 5 bilhões, entre multas já quitadas e parcelas depositadas.
Para o ex-procurador Deltan Dallagnol, a ofensiva representa uma “derrota da sociedade”. “Não vai mudar a reputação ou a credibilidade da Lava-Jato. Cada real que foi diminuído é um real que a sociedade perde, que devia estar na saúde, educação, segurança, nos cofres da Petrobras”, diz. Na visão de Sergio Moro, há ainda um “desvio de finalidade” na ADPF, um “instrumento construído para tutela de direitos fundamentais” e que está “sendo usada para rever acordo de leniência com empresa que praticou suborno”.
Neste momento, o processo está nas mãos do ministro André Mendonça, mas o Supremo já informou que a ação será julgada no mérito e em plenário, ainda sem data. Em julho, Mendonça pediu mais informações a órgãos como o MPF, a AGU e o TCU, para melhor guiar sua decisão.
A CGU foi uma das primeiras a se manifestar, e de maneira contrária à iniciativa dos partidos. Em defesa de sua atuação, a leitura é de que há “alegação genérica de abusividade”, e de que é possível, sim, revisar os acordos, mas de maneira individualizada, não com a “revisão ampla e irrestrita” prevista pela ação. O parecer vai na linha do que dizem outras entidades interessadas e incluídas na tramitação, como o Partido Novo e o Instituto Não Aceito Corrupção. O presidente da instituição, Roberto Livianu, destaca que não houve anuência das empresas no processo, o que é reconhecido por pessoas ligadas à ação. A iniciativa, inclusive, não é unânime sequer dentro dos partidos que encabeçam o pedido. No PSOL, por exemplo, relatos dão conta de que a bancada de parlamentares não foi ouvida.
Isso não quer dizer, no entanto, que as empresas não têm se movimentado para rever seus acordos. Odebrecht e Andrade Gutierrez, ambas com multas bilionárias, estão entre as companhias que buscam algum tipo de repactuação. Interlocutores na CGU dizem que há seis companhias ao todo recorrendo e, apesar de haver pedidos de revisão desde os primeiros anos da operação, especialistas apontam agora uma tendência nesse sentido, especialmente após o baque econômico trazido pela pandemia. As investidas, todavia, não têm buscado alterar o valor da multa, mas a forma de pagamento, de modo a negociar mais parcelas ou mais tempo para pagar, por exemplo. No comando das empresas, especialmente as maiores e que têm melhor saúde financeira, a máxima é de que quanto menos se falar do obscuro período da Lava-Jato, melhor, o que aumenta a resistência por contestações de maior impacto — além, claro, dos benefícios conquistados pelas empresas com a assinatura dos acordos.
É consenso, contudo, o impacto avassalador da Lava-Jato nas corporações envolvidas nos escândalos de corrupção. Conforme levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a operação teve como efeitos colaterais a perda de mais de 4 milhões de empregos, com reflexos em grandes companhias, como a Odebrecht, a Andrade Gutierrez e a OAS. No caso da companhia baiana, que agora pertence ao Grupo Coesa, o Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a decretar falência no processo de recuperação judicial, medida revertida no início de agosto, após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Se comparado ao cenário internacional há exemplos como na Espanha, em que multas a construtoras condenadas no ano passado não passam dos R$ 100 milhões de euros, uma punição mais branda e com menor impacto às empresas. Nos Estados Unidos, entretanto, as sanções aplicadas por corrupção têm aumentado nos últimos anos. Em 2020, por exemplo, o Goldman Sachs concordou em pagar pouco mais de US$ 2,5 bilhões, em negociação com o Departamento de Justiça americano.
A tendência, para o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Bernardo Vianna, é de aumento dessas cifras, conforme mais irregularidades são identificadas. “Mas a operação Lava-Jato foi algo fora da curva, que dificilmente se repetirá em outros lugares”, reconhece. “Cada acordo tem suas fundamentações, fatos admitidos, revelados, multas e indenizações calculadas. Se alguém entendeu que negociou sobre bases que não faziam sentido, este participante tem que buscar o que entende que é de direito. Mas uma grande revisão não faria sentido”, conclui.