O americano Glenn Greenwald, de 52 anos, virou uma celebridade jornalística internacional em 2013. Com base em documentos ultrassecretos vazados pelo ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden, ele revelou que os Estados Unidos espionavam governos de diversos países, incluindo aliados. As reportagens lhe renderam em 2014 o Pulitzer, o prêmio mais importante da imprensa mundial. Greenwald vive desde 2005 no Brasil, onde se casou com David Miranda, deputado federal pelo PSOL, e fundou aqui o The Intercept Brasil, versão nacional do site de notícias que lançou nos Estados Unidos. No ano passado, o veículo provocou um forte abalo na imagem do ex-juiz Sergio Moro e da Lava-Jato com uma série de reportagens baseadas em diálogos repassados ao jornalista por um grupo de hackers. O material analisado e publicado em conjunto por VEJA e outros veículos demonstrou que Moro instruía os procuradores, mandava acelerar ou retardar operações e fazia pressão para que algumas delações não andassem, desequilibrando a balança da Justiça.
Na última terça, 21, em um evidente abuso de autoridade, o Ministério Público Federal de Brasília denunciou o jornalista no caso dos vazamentos da Lava-Jato. Com base em uma interpretação forçada de diálogos entre Greenwald e um dos hackers, o procurador Wellington Divino de Oliveira tenta sustentar que o jornalista foi cúmplice do crime, acusando-o de delitos como formação de quadrilha. Na verdade, nas conversas com esse e outros hackers, o jornalista comportou-se de forma ética e profissional. Ele chega a afirmar que não pode aconselhar a fonte e promete tomar os devidos cuidados para manter o nome dela em sigilo (promessa cumprida pelo jornalista). A denúncia contra Greenwald provocou ainda mais indignação e surpresa pelo fato de que ele nem sequer foi investigado no caso. No inquérito sobre os hackers, a Polícia Federal (que, por sinal, é subordinada a Moro) concluiu que o americano não cometeu nenhum crime. Na verdade, ele fez apenas jornalismo: recebeu o material e publicou as reportagens depois de checar sua veracidade. Fez isso sem pagar pelas informações nem receber dinheiro de alguém com interesse em publicá-las. Na tentativa de incriminar o jornalista, o procurador do MPF atropelou também uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF, que proibiu que Greenwald fosse investigado “pela receptação, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia”, com o objetivo de proteger o sigilo da fonte jornalística, garantido pela Constituição.
A repercussão da denúncia contra Greenwald foi imediata. O presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM), afirmou que se trata de uma ameaça à liberdade de imprensa e foi seguido pela Ordem dos Advogados do Brasil, por associações de jornalistas e empresas de mídia. O New York Times tratou do assunto na quarta 22. “Atacar os portadores dessa mensagem é um desserviço sério e uma ameaça perigosa ao Estado de direito”, registrou o jornal americano em seu editorial. Goste-se ou não do trabalho e do posicionamento político de Greenwald (o jornalista aderiu equivocadamente à tese de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de Estado), não há como concordar com o embaraço imposto a ele pelo procurador Oliveira. Se o juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília, aceitar a tese do Ministério Público, Greenwald virará réu e poderá ser condenado (hipótese improvável, pois ele teria direito a recorrer até ao STF, onde os membros da Corte já se manifestaram a seu favor). A defesa aposta que a denúncia será rejeitada por Leite. Trata-se de uma expectativa não restrita aos advogados de Greenwald. A tentativa de constrangê-lo é uma afronta a toda a sociedade, que depende da imprensa livre para ter acesso a verdades que muitas vezes os poderosos, de qualquer linha ideológica, preferem esconder.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671