Pela primeira vez em 187 anos, desde que foi depositado em um cálice revestido de mogno no sarcófago da Igreja da Lapa, na cidade do Porto, em Portugal, o coração de dom Pedro I saiu de seu refúgio — e veio bater no Brasil, recebido com pompa. A travessia do músculo de Pedro IV, como é conhecido entre os portugueses, foi cercada por cuidados de cientistas forenses. Havia alguns riscos, sim, mas eles foram minimizados ao máximo. Difícil foi fugir das críticas do ponto de vista político do gesto, em decisão do governo de Jair Bolsonaro para celebrar os 200 anos da independência. É ideia um tanto sem sentido e que remete à importação do corpo do imperador para São Paulo, em 1972, durante a ditadura militar, nas festas do sesquicentenário da separação da Corte portuguesa. Há cinquenta anos, o coração ficou no além-mar. Vieram só os ossos. Bolsonaro deu um jeito, agora, porque o prefeito do Porto compartilha as ideias conservadoras do presidente. Não seria exagero dizer que dom Pedro I se revira no túmulo, porque o que ele queria, ao morrer, deixou anotado em um de seus diários: desejava “ser enterrado em caixão de madeira simples, como um soldado, comandante do Exército português”. O pesquisador Paulo Rezzutti, respeitado especialista no assunto, resume a ópera: “É um carnaval macabro, um evento efêmero que a nada serve; trazer um órgão humano dentro de um vidro, expô-lo em Brasília e dizer que esse é o grande evento comemorativo dos 200 anos da nossa independência é trágico”. O historiador Luiz Felipe de Alencastro ecoa: “Que coisa mais ridícula, exibicionismo necrófilo do pedaço do corpo de um chefe de Estado que apoiou a continuidade do tráfico de escravizados”. O Brasil, como diria Tom Jobim, não é para amadores.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804