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A fraude da fraude

Ana Brígida de Jesus virou uma heroína ao combater desvios em campanhas de doações para bebês doentes — até que uma descoberta surpreendente mudou tudo

Por Fernanda Bassette
Atualizado em 29 mar 2019, 18h59 - Publicado em 29 mar 2019, 07h00

Há cerca de um ano, as suspeitas em torno da campanha de doações para o bebê Jonatas Henrique Openkoski incendiaram as redes sociais. Depois de arrecadarem mais de 3 milhões de reais em apenas dois meses para comprar medicamentos contra um tipo letal de atrofia muscular degenerativa chamada AME, os pais de Jonatas, os catarinenses Renato e Aline Openkoski, mudaram de padrão de vida. Adquiriram carro do ano, roupas de marca e embarcaram em programas badalados, como uma festa de réveillon no Arquipélago de Fernando de Noronha. A gastança causou revolta entre aqueles que lhes entregaram suas economias em um gesto de compaixão, incentivados por atores e cantores que se empenharam em divulgar a causa do bebê.

Uma boa parte dos indícios de desvios foi exposta na internet graças ao empenho da contadora carioca Ana Brígida de Jesus, de 31 anos. As fotos e testemunhos que ela reuniu foram matéria-prima fundamental para as investigações da Polícia Civil e, posteriormente, do Ministério Público, que denunciou os pais de Jonatas pelos crimes de estelionato e apropriação indébita. Diante da atuação certeira no caso, Ana Brígida passou a ser procurada por pessoas no Brasil todo — e expandiu sua atuação fiscalizadora. À frente do perfil no Instagram batizado de Fraudes em Campanhas, que chegou a ter 22 000 seguidores, Ana Brígida construiu uma excelente reputação e conseguiu expor suspeitas de mutretas em outras campanhas de arrecadação. Com isso, tornou-se uma fiadora da lisura dos pedidos de doação e bolou um sistema engenhoso. Funcionava assim: os doadores enviavam os recursos para uma poupança da Caixa Econômica Federal que pertence à filha de uma amiga virtual de Ana Brígida. Essa amiga, por sua vez, transferia as verbas para que Ana fosse às compras dos itens solicitados pelas famílias aflitas. Assim, envolvendo mais pessoas na operação, havia a garantia de bom uso do dinheiro.

O processo chegou a funcionar corretamente por alguns meses. Uma boneca comprada nos Estados Unidos para uma criança com AME, a mesma doença de Jonatas, por exemplo, chegou ao Brasil e Ana Brígida, por sua vez, fez o encaminhamento adequado para a família. Em outro caso, Ana Brígida movimentou 1 266 reais e, tal como estava previsto, pagou todas as contas de luz atrasadas da família de uma criança com pneumonia em estágio avançado. O sistema operava bem, ajudando famílias necessitadas com filhos doentes — até que uma descoberta surpreendente mudou tudo: Ana Brígida foi flagrada, ela mesma, fazendo o que tanto combatia. Seduzida pelo volume de doações financeiras ao seu alcance, ela cedeu à tentação e acabou desviando montantes destinados a crianças necessitadas.

“Fiquei com parte do dinheiro para mim, sim. Não sou hipócrita”, confessou Ana Brígida, em entrevista a VEJA. Mas, segundo ela, seus desvios não chegaram “nem a um terço” dos valores de que é acusada, embora não saiba informar as contas exatas de quanto embolsou das doações. Ana Brígida só confessou depois que as suspeitas sobre seu comportamento estavam se acumulando. A dona de casa Micaela Ferreira da Silva, de 19 anos, moradora de Guarulhos, é mãe de duas bebês com AME. Ela acusou Ana Brígida de sumir com 10 000 reais que seriam destinados à compra de equipamentos de fisioterapia fundamentais para a recuperação das meninas. “Ela prometia o céu para as crianças doentes enquanto, na verdade, as enganava, de forma cruel.” A família vive uma situação difícil — apenas a filha de 3 anos está em casa, enquanto a mais nova, de 1 ano e 8 meses, permanece internada em um hospital por falta de estrutura de home care. A advogada Ana Siqueira, de 39 anos, foi vítima por outros meios. Ela repassou cerca de 3 000 reais para a conta na Caixa e forneceu os dados de seu cartão de crédito, de modo que Ana Brígida comprasse passagens aéreas para que judocas cegos disputassem um campeonato. Acabou com um rombo de 21 948,90 reais na fatura, torrados, por exemplo, em lojas on-line que vendem sapatos e bolsas. “Confiava 100% nela e entrei em depressão depois do que aconteceu.”

Diante das denúncias, a amiga virtual cuja filha recebia as doações na conta da Caixa resolveu se precaver. Temendo pelo destino do dinheiro transferido para Ana Brígida, a mulher, que pede para não ter a identidade revelada, fez um boletim de ocorrência na 1ª Delegacia de Polícia de Joinville. Registrou ter repassado cerca de 30 000 reais para Ana Brígida.

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DENUNCIADO - Renato Openkoski, com o filho Jonatas: processo por estelionato após evidências colhidas por Ana (Arthur Andrade/.)

Há casos em que a ex-caçadora de falsários não apenas deixou de fazer o repasse como ainda tirou recursos de famílias com crianças doentes. A dona de casa Aline de Almeida Santos, de 24 anos, mãe de um garoto de 4 anos com gangliosidose — doença rara que causa restrições neurológicas —, pediu ajuda para comprar um carrinho adaptado, chamado Kimba Neo, que chega a custar 25 000 reais no Brasil, a depender dos acessórios. “Ana me disse que havia ganhado um, mas que ele estava preso na Receita Federal e era preciso pagar 2 900 reais para liberar.” Animada com a oportunidade, Aline passou o chapéu entre apoiadores e depositou os 2 900 reais em 3 de agosto do ano passado, mas nunca recebeu o item, apesar dos contínuos questionamentos. “Só me dei conta de que estava sendo enganada depois que vi outras mães reclamando”, diz Aline. Ela também procurou a polícia.

Uma vez envolvida com o carrossel de golpes que começou a aplicar, Ana Brígida afundou cada vez mais. Passou a inventar histórias sobre si mesma para atrair a compaixão de seu público generoso. Chegou a espalhar que estava grávida e, assim, recebeu ajuda para comprar enxoval e outros itens importantes para essa fase da vida. A mineira Juliana Badaró, que trabalha como diarista em Boston e havia se tornado a apoiadora mais engajada de Ana Brígida (fazia rifas e bazares nos Estados Unidos), conta que chegou a receber diversas “provas” da maternidade: imagens de ultrassom, mensagens de áudio com o pulso cardíaco do feto e uma foto na qual a falsa gestante mostrava o abdômen proeminente no espelho. Tudo lorota. Em outra denúncia, registrada em boletim de ocorrência na 1ª Delegacia de Polícia contra Crimes Praticados contra Criança e Adolescente de Macapá, a estudante de fisioterapia Priscila Diniz Pinheiro, de 33 anos, acusa Ana Brígida de fingir interesse em adotar um bebê de 5 meses com doença grave do qual os pais, muito pobres, não tinham condição de cuidar. A iniciativa, adivinhe, motivou uma nova corrida de arrecadação, mas Priscila descobriu que nunca houve entrada no processo de adoção. “Ela era uma pessoa acima de qualquer suspeita. Tenho pena dela por ter se afundado nas próprias mentiras”, lamenta a universitária, que não sabe quanto foi arrecadado com essa farsa. Ana Brígida, que é mãe de um menino de 8 anos, afirma que tinha real intenção de adotar a criança — “Só não fiz isso por falta de condições financeiras” —, mas confessa que inventou a gravidez. “Minha vida virou uma mentira.”

DENUNCIANTE - Micaela Silva e Mariane, uma de suas duas filhas com atrofia muscular: lesada por Ana em 10 000 reais (Jefferson Coppola/.)

Mentiras que chegaram, inclusive, à sua aparência física. A advogada Gabriela Mayara de Oliveira Assis, de Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, ficou assustada quando foi alertada na internet de que Ana Brígida usava suas fotos em perfis de redes sociais — e até mesmo em sites de relacionamento. Mais jovem e mais magra, ouviu de Ana Brígida que a fraude aconteceu “por problemas de autoestima”. Conta a advogada: “Ela também disse que não queria mostrar o rosto porque recebia ameaças das famílias que denunciava. Fiquei com medo”.

Algumas das mães lesadas por Ana Brígida, como Micaela e Aline, tiveram a ajuda de pais de outras crianças doentes para cobrir o prejuízo. Há registros contra Ana Brígida em ao menos cinco delegacias. Hoje desempregada, ela diz que se mudou para uma cidade do interior de São Paulo, onde vende bolo nas ruas para sobreviver, e que teme represálias. Chegou a fazer várias transmissões ao vivo no Instagram a fim de explicar­-se. Reconheceu uma série de erros, desculpou-se e alguns dos prejudicados foram ajudados por outros voluntários, mas ela mesma não devolveu o que surrupiou. “Por mais que eu diga que me arrependi e peça perdão, as pessoas não vão me perdoar.”

Ela pode acabar respondendo por estelionato e apropriação indébita, os mesmos crimes de que são acusados os pais do menino Jonatas, citados no começo desta reportagem. Para azar do casal, que sempre se disse inocente e injustiçado, os enroscos de Ana Brígida não aliviam em nada suas complicações — a denúncia do Ministério Público se baseia em outras provas e em uma série de testemunhos que incluem até os de familiares dos réus. Enquanto aguardam a primeira audiência judicial, marcada para 16 de maio, eles enfrentam um iminente despejo por falta de pagamento da ampla casa que alugaram depois de receber os milhões de reais em doações para o menino. Na quarta-feira 20, foram notificados de que teriam quinze dias para deixar o local caso não acertassem a situação — se isso acontecer, poderão perder a guarda de Jonatas, que precisa de uma série de cuidados especiais no dia a dia.

Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

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