A campanha que pretende fazer de Raoni o primeiro prêmio Nobel brasileiro
Agressões de Jair Bolsonaro ao cacique deram impulso à campanha do líder indígena para receber a distinção, inédita no Brasil
A semana foi de celebração na aldeia Metuktire. No local, cercado pela imensidão da Floresta Amazônica no norte de Mato Grosso, vivem cerca de 320 índios caiapós. Por lá, Raoni Metuktire participou com os outros homens de rituais em homenagem às crianças do povoado. Em meio aos festejos, o cacique se dedicava a cuidar da mulher, octogenária, debilitada e já sem conseguir andar devido a problemas de saúde, e das tarefas cotidianas. Passou os últimos dias praticamente isolado do burburinho em torno de seu nome. No mês passado, Raoni entrou oficialmente na lista de concorrentes ao Nobel da Paz em 2020. A campanha vem se espalhando pelas redes sociais acompanhada da hashtag #RaoniNobel. Sua vitória representaria um prêmio inédito para o Brasil. Na quarta-feira 2, em uma conversa intermediada por um tradutor, Raoni falou a VEJA em seu idioma nativo sobre essa possibilidade. “Há anos trabalho pela paz entre indígenas e brancos. As pessoas falam que esse prêmio é importante para reconhecer a minha luta”, disse. “O presidente quer diminuir a terra indígena e destruir a natureza para o garimpeiro entrar no nosso território. Tentei pedir apoio ao governo, mas só o povo me apoia. Sou contra esse plano do governo e, por isso, sou atacado. Mas não vou desistir. Ficarei firme até o fim para não destruírem a natureza e o meu povo.”
Embora o comitê da Noruega responsável pelo Nobel seja blindado contra influências externas, os governos nacionais costumam apoiar conterrâneos com chances de receber o prêmio, já que a vitória representa uma honra para o país. No Brasil, ocorre o contrário com o caso Raoni. A campanha começou a tomar força justamente no momento em que Jair Bolsonaro passou a atacar o cacique em público. Em uma de suas últimas declarações, o presidente desdenhou da preocupação em torno dos índios e da Amazônia, dizendo que o interesse real é pelo minério não explorado na floresta. Ao final, deu uma nova cutucada no cacique. “Raoni não fala por todos os índios. É outro que vive tomando champanhe em outros países por aí”, declarou. No início de setembro, VEJA mostrou que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vinha alertando o presidente sobre o que considerava uma campanha de difamação empreendida contra ele no exterior. Entre os artífices de tal manobra conspiratória estariam Raoni e a ONG Rainforest Foundation, fundada pelo cantor britânico Sting, amigo de longa data do cacique. Após o recente desentendimento público que Bolsonaro teve com o presidente francês Emmanuel Macron em torno das queimadas na Amazônia, seus canhões verbais se voltaram de vez contra o líder indígena. “Acabou o monopólio do senhor Raoni”, afirmou o presidente em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU. Para o evento em Nova York, ele arrastou a youtuber indígena Ysani Kalapalo, que tem um canal na internet em que defende a política ambiental do governo e diz não reconhecer Raoni como uma liderança.
Consta no passaporte de Raoni que ele nasceu em 20 de agosto de 1932. Ou seja, teria hoje 87 anos. A indicação de seu nome ao Nobel foi pensada desde o início de 2019 por um grupo de acadêmicos ligados à Fundação Darcy Ribeiro. Raoni foi informado dessa iniciativa quando retornou de uma viagem à Europa no fim de maio, após ter se encontrado com Emmanuel Macron e o papa Francisco. A Fundação Darcy Ribeiro vem buscando apoio até de governos estrangeiros para cacifar o nome de Raoni, e no Brasil artistas como Caetano Veloso já aderiram ao movimento. Um dos responsáveis por transformar o cacique em uma personalidade internacional, o cantor Sting declarou a VEJA que não há momento mais apropriado para o cacique vencer o Nobel. “O mundo científico corrobora agora o que Raoni soube durante toda a vida. E vemos muitos líderes mundiais em negação patológica sobre os perigos que o planeta está enfrentando. É absolutamente essencial que Raoni seja homenageado publicamente dessa forma.” O vencedor da edição 2019 do Nobel da Paz será anunciado no próximo dia 11. Graças ao barulho recente em torno de Raoni, o nome do cacique apareceu em sites de apostas no exterior, que não têm obviamente nenhuma conexão com a academia da Noruega mas servem de parâmetro para a popularidade de alguns líderes. Essas páginas prometem pagar onze vezes mais o dinheiro investido por quem acertar a vitória de Raoni. A grande favorita é a ativista sueca Greta Thunberg, que paga 1,6 para 1.
O cacique conta que seu pai o alertava desde criança de que caberia a ele fazer a mediação entre brancos e o povo caiapó, de tradição guerreira. Por volta dos 15 anos, Raoni teve o auxílio do irmão para implantar o botoque no lábio, símbolo do poder de oratória. Já como um jovem líder de sua aldeia, em 1954, avistou pela primeira vez os forasteiros brancos. Os irmãos Villas Boas, sertanistas fundamentais para o desbravamento do “Brasil profundo”, haviam encontrado o povoado em que ele vivia. Com os Villas Boas, Raoni aprendeu português e partiu em expedição para a região do Xingu. Começou a ter exposição internacional com o documentário que levava seu nome e foi dirigido pelo belga Jean-Pierre Dutilleux e pelo brasileiro Luiz Carlos Saldanha. Na Constituinte de 1987-1988, com a bandeira brasileira em mãos, fez um discurso histórico pelos direitos indígenas. “Nós somos donos disso aqui, o Brasil é nosso”, declarou. Em 1989, apresentado por Dutilleux ao cantor Sting, empreendeu uma turnê por diversos países. Ao retornar ao Brasil, logrou os seus maiores feitos: a homologação das demarcações de duas terras dos caiapós e do Parque do Xingu. Mais recentemente, falou grosso contra os petistas Lula e Dilma Rousseff por ocasião das obras da usina Belo Monte, construída na região. “Ele é um diplomata que dialoga com o mundo dos brancos em nome dos povos indígenas”, afirma Márcio Meira, presidente da Funai entre 2007 e 2012.
Desde a eleição de Bolsonaro, o cacique vinha pedindo que funcionários do instituto que leva o seu nome marcassem um encontro com o presidente. O máximo que conseguiu foi uma breve reunião com a ministra Damares Alves, em que teve tempo só para se apresentar. Por isso, Raoni se revoltou quando foi atacado pelo presidente. Após o discurso de Bolsonaro na ONU, solicitou uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Em um encontro de quarenta minutos, Raoni disse que o Brasil não tem só um presidente, mas presidentes de vários poderes. “Não gostei do que Bolsonaro falou, mas sou da paz e quero falar de coisas do meu povo”, declarou. Em postura oposta à do presidente, Maia fumou o cachimbo da paz, garantindo que a Câmara não pautaria projetos prejudiciais aos povos indígenas.
É essencial que Raoni ganhe o Nobel agora que líderes mundiais negam de forma patológica os perigos que o planeta enfrenta.
Sting, em entrevista a VEJA, sobre a candidatura do cacique
Do governo francês, em maio, Raoni ouviu a promessa de ajuda de 1 milhão de euros para diversos projetos realizados na terra indígena em que vive e no Alto Xingu, como capacitação dos locais e o fortalecimento de brigadas indígenas contra incêndios. Seu instituto, no entanto, sofre para pagar contas de água e luz. Os ataques de Bolsonaro também reverberaram em Peixoto de Azevedo (MT), onde fica a sede da organização. Funcionários retiraram os adesivos que identificam o carro do instituto para evitar atos de violência. Desde a campanha, Bolsonaro vem ameaçando não demarcar nenhuma terra indígena em seu governo e já manifestou interesse de abrir as áreas para mineração. Nos nove primeiros meses deste ano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou 160 casos de invasões contra terras indígenas — em 2018 foram 109 e em 2017, 96. São a postura belicosa de Bolsonaro contra Raoni e as políticas do governo relacionadas ao meio ambiente e aos povos indígenas que podem servir de combustível para o comitê norueguês enviar um recado de oposição a isso em escala global — e dar ao Brasil seu primeiro Nobel.
Com reportagem de Denise Chrispim Marin e Sérgio Martins
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655