Roteiro de ‘Cidade Invisível’ estraga boa ideia sobre folclore brasileiro
Nova aposta nacional da Netflix ganha pontos ao dar nova cara para nomes como Saci, Cuca e Iara, mas tropeça ao subestimar inteligência do espectador
É instigante a premissa da série Cidade Invisível, criação do cineasta Carlos Saldanha e nova aposta nacional da Netflix. A trama conduzida por Marco Pigossi – ex-galã global que se tornou ator da plataforma de streaming – resgata personagens do folclore brasileiro e os traz para os dias de hoje, como elementos desencadeadores de um suspense no Rio de Janeiro. Com sete episódios, a série dá nova cara a personagens populares como o malandro Saci, a manipuladora Cuca, a bela sereia Iara, o pirotécnico Curupira e o galanteador Boto-Cor-de-Rosa. No primeiro episódio, um incêndio numa reserva florestal é o estopim de uma investigação encabeçada por Eric (Pigossi), um policial ambiental que sofre a perda de um familiar na tragédia. Começa então um suspense que ganhará respostas próximo do final. O elenco é bom, e a promessa de mistério também. Pena que não se possa dizer o mesmo do roteiro.
Conforme Eric avança em sua investigação, que ganha novos contornos quando um Boto-Cor-de-Rosa de água doce é encontrado morto em plena praia carioca, os personagens mitológicos se revelam como pessoas do cotidiano. Esqueça aquela Cuca com aparência de jacaré – aqui, a bela Alessandra Negrini dá vida à bruxa que assombra criancinhas em músicas de ninar. Não é difícil identificar quem é quem. O Saci, por exemplo, é Isac (Wesley Guimarães), um jovem morador de uma ocupação que usa uma prótese no lugar da perna que lhe falta e uma bandana vermelha na cabeça. Quem tiver dúvidas, porém, não as alimentará por muito tempo. Inês, personagem de Alessandra, por exemplo, não revela sua identidade de cara, como os demais. Até que, em uma cena de tom aterrorizante, ela canta o famoso “nana neném, que a Cuca vem pegar”. Algumas cenas depois, outro personagem alerta Eric sobre a periculosidade da mulher que conduz um bar noturno: “A Inês é a Cuca”. Em outro episódio, a canção volta a rondá-la. Sim, já entendemos que ela é a Cuca, mas a série insiste em reiterar a informação.
Esse é um dentre muitos exemplos do excesso de didatismo do roteiro – que, em todos os episódios, faz questão de reforçar lances que já estão mais que claros e explicados, subestimando o entendimento do espectador. A série sofre no início, ainda, com a dúvida sobre qual público quer conquistar: adultos interessados em suspense, terror e violência – ou crianças que estudam essas lendas na escola? Embora a primeira opção seja a mais óbvia, os sinais se confundem com a participação confusa da filha de Eric, Luna (Manuela Dieguez), uma garotinha adorável. Em determinada cena, a menina tromba com o Saci na cozinha da própria casa e, em vez de se assustar com o invasor, não só o aceita como engata uma amizade com ele. Ao fim, os comportamentos deveras estranhos de Eric, que tem lapsos de memória, e da criança amiga do Saci são explicados – o que não redime, porém, o início bipolar da série.
No balanço geral, Cidade Invisível é sedutora e tem pontos altos. Camila (Jessica Cores), uma cantora da noite, é um deles. A jovem, que na verdade é a sereia Iara, encanta os homens ao redor e tenta manter certa unidade em meio ao estranho grupo de seres folclóricos. Alessandra Negrini se equilibra entre a Cuca assustadora e aquela que é a líder protetora dos colegas de lendas. O flerte com a importância da proteção ambiental ocupa um espaço mínimo na trama, o que pelo menos ajuda a não tornar tudo mais enfadonho. Ao fim, a solução do mistério acaba sendo satisfatória e os personagens das lendas brasileiras se revelam em mais camadas que o esperado. Pelo desfecho, é provável que uma segunda temporada venha por aí. Fica a esperança de que a nova fase melhore a qualidade do roteiro. Senão, a Cuca vai pegar.