‘Bridgerton’ lidera onda da TV que muda o passado para falar do presente
Sucesso da Netflix, série imagina uma sociedade multirracial na Inglaterra do século XIX, uma tendência da ficção que faz da história um lugar de igualdade
Carruagens se alinham em um inusitado trânsito pelas ruas de Londres rumo ao palácio de St. James. Damas com vestidos coloridos e bufantes tentam ocultar, sem muito sucesso, a ansiedade do que está por vir: aristocratas apresentarão suas jovens debutantes à sociedade, diante da rainha da Inglaterra, como mulheres prontas para o casamento. O ano é 1813. Negros, brancos e asiáticos circulam pelas ruas e pelo alto-escalão da corte, em uma sociedade na qual o racismo e a escravidão (que seria abolida no país em 1833) são inexistentes. A chuvosa cidade inglesa está tão ensolarada e vibrante que parece um universo paralelo – e de fato é. A cena que abre Bridgerton é um aperitivo fiel do que os oito episódios da série que virou hit na Netflix prometem: uma trama escapista, com romances açucarados e liberdade para dançar por fatos históricos a seu bel prazer.
Tamanha liberdade advém do poderio conferido à produtora Shonda Rhimes, grife da TV americana, dona de sucessos como Grey’s Anatomy e Scandal, e nome por trás de Bridgerton. Mas não só: as licenças históricas engrossam uma onda atual em que a ficção deita e rola sem pudores no anacronismo. Em seu sentido literal, o termo refere-se a representações errôneas do passado, com interferências de elementos da atualidade. O que os roteiristas do século XXI fazem, porém, é usar o recurso de mudar o passado não como um equívoco, mas como uma possibilidade imaginativa. Em Bridgerton, a adição de atores negros em papéis de destaque, como o mocinho, um cobiçado duque, e até a própria rainha da Inglaterra, fez da série um produto digno de debate ao refletir que minorias se encaixam, sim, em todos os âmbitos da sociedade.
Segue essa linha Hollywood, de Ryan Murphy, também da Netflix, que recria de forma utópica o desfecho de minorias na indústria cinematográfica dos anos 40, com atores e atrizes que conseguem vencer preconceitos raciais e a homofobia – ao contrário do final não tão feliz que esses personagens encararam na realidade. No cinema, Quentin Tarantino fez isso nos ótimos Bastardos Inglórios, em que uma jovem judia se vinga de Hitler de forma magistral, e Era uma Vez em… Hollywood, no qual o diretor salva a vida de Sharon Tate da seita de Charles Manson.
Em outro ponta da mesma tendência estão de The Great (no Starzplay) e Dickinson (na Apple TV+), sobre Catarina, a Grande (1729-1796) e a poeta Emily Dickinson (1830-1886), respectivamente. Em ambas, lances de modernidade ajudam a preencher lacunas sobre as jornadas das duas figuras históricas, com acidez, ironia e o incontornável empoderamento feminino à la século XXI. A trilha sonora é um deleite à parte, com pérolas que vão do rock de Patti Smith à melancólica Billie Eilish.
Bridgerton oferece um compêndio de todos estes elementos. Com detalhes atuais no figurino de época, como uma peruca black-power num pomposo baile da corte britânica, até violinos conduzindo versões de Ariana Grande e Taylor Swift na trilha, a série bebe da mesma realidade descrita nos livros de Jane Austen, mas logo se desvencilha da dama da literatura inglesa: conversa melhor com a pop Gossip Girl e o famigerado Cinquenta Tons de Cinza, por suas cenas de sexo deveras apimentadas.
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A adaptação do livro O Duque e Eu, o primeiro de uma saga de nove títulos da autora americana Julia Quinn, segue a caçada da protagonista Daphne Bridgerton (a adorável Phoebe Dynevor) por um bom casamento. Filha mais velha da família de oito irmãos que dá nome à série, a moça bela, rica e bem-educada é um partidão. Ela entende que, em sua realidade patriarcal, matrimônio é negócio e sobrevivência – mas gostaria de acrescentar amor à equação. Na busca, se alia ao duque Simon Basset (Regé-Jean Page), solteirão convicto com quem faz um trato. O rapaz para lá de cobiçado (e bonitão) demonstrará interesse por Daphne, assim, ela chamará a atenção de pretendentes, enquanto ele se livrará das mães, doidas por torná-lo genro. Não é preciso muito esforço para imaginar o que acontece em seguida com o casal protagonista.
Se a reunião de clichês seria suficiente para dar à Netflix uma audiência robusta, o elenco se mostrou um quê a mais. Para além da pressão social que levou a palavra diversidade a cair no lugar comum, a série não só coloca minorias sob os holofotes, como acende um alerta para o modo como programas de época representam também personagens reais. É o caso da rainha Charlotte (Golda Rosheuvel – foto no topo), birracial na série – e, historiadores sustentam, teria sido também na vida real. Casada com George III, que acabou conhecido como o “rei louco”, e avó da rainha Victoria, Charlotte (1744-1818), já representada no cinema pela branca Helen Mirren, teria ancestrais africanos. O questionamento sobre sua linhagem veio à tona quando Meghan Markle se casou com príncipe Harry e especialistas refutaram que a atriz americana seria a primeira mulher mestiça a entrar para a realeza inglesa. Charlotte era contra a escravidão e afeita às artes — foi amiga e incentivadora de Mozart (1756-1791). Na série, a soberana dá um show com sua postura de diva. Curte uma fofoca na mesma medida em que adora uma festa, e observa seus súditos como personagens de um reality show casamenteiro. É a cereja do bolo de um roteiro em que o caráter e a posição de cada um não são pautados pela cor da pele. Lição que a vida real ainda pena em aprender.