A PF interroga o delegado da PF que é chefe do chefe da PF
É difícil acreditar que os delegados da Polícia Federal terão ampla liberdade para interrogar o ministro-chefe-colega

O ministro da Justiça é um delegado da Polícia Federal, o bolsonarista-raiz e amigo do peito de Flavio Bolsonaro Anderson Torres.
Deveria ser proibido que policial ainda em atividade fosse ministro, porque o ministério é cargo de governo e a Polícia Federal é uma instituição de Estado. Misturar as duas coisas sempre acaba mal, como podem atestar as Forças Armadas, cuja imagem está mais suja do que pau de galinheiro justamente por causa da maciça presença de militares no governo. (Assim como há uma “PEC do Pazuello”, para proibir militares da ativa de participar do governo, deveria haver uma “PEC do Torres”.)
A simples presença de Torres já seria um problema em si, mas Bolsonaro, que gosta de esticar a corda, levou seu ministro da Justiça para participar de uma live em que cometeu, na cara do Brasil inteiro, vários crimes. Ao fazer isso, transformou o ministro em cúmplice.
Agora o Supremo decidiu investigar os crimes de Bolsonaro e determinou que o ministro preste depoimento à Polícia Federal. Ou seja, o delegado da PF que é chefe do chefe da PF vai ser interrogado por seus pares, delegados da PF.
A subordinação hierárquica não é o único motivo para desconforto. Mencione-se o delegado Alexandre Saraiva, que ousou denunciar o ministro Ricardo Salles e perdeu a superintendência da PF no Amazonas, sendo despachado para o interior do estado do Rio de Janeiro. Mencione-se o delegado Franco Pezzani, que ousou conduzir uma operação de busca e apreensão contra Salles e perdeu a chefia da Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros do Distrito Federal.
Mencione-se que Anderson Torres determinou que a Polícia Federal buscasse evidências de fraude eleitoral para embasar as fake news de Bolsonaro (a PF não encontrou nada, por sinal).
Mencione-se que a Polícia Federal acaba de abrir inquérito contra a CPI da Pandemia por suposta divulgação de dados sigilosos (os senadores vão ao Supremo reclamar da tentativa de intimidação).
Mencione-se que a mesma Polícia Federal não mostra qualquer interesse em investigar o presidente Bolsonaro, que acaba de divulgar em suas redes, na cara de todo mundo, um relatório sigiloso (e inconcluso) da própria PF.
Quem quiser acreditar que os delegados da PF não se sentirão constrangidos para interrogar o colega e chefe de seu chefe, é livre para acreditar (também é permitido acreditar que cloroquina é bom para Covid e que quem toma vacina corre o risco de virar jacaré).
Kafka ficaria besta com o Brasil de Jair Bolsonaro.