Em 1990, miseráveis invadiam as grandes cidades do país
Moradores de rua aumentavam em velocidade vertiginosa nas grandes cidades 27 anos atrás
A edição desta semana de VEJA traz a terrível constatação de que voltou a crescer o número de miseráveis no país. Se entre 2004 a 2014 subiu o número de brasileiros que saíram da pobreza, graças ao crescimento econômico, à criação de empregos e aos programas assistenciais, de 2015 para cá a realidade é cada vez pior. A questão é um dos problemas crônicos do país. Em 19 de dezembro de 1990, com a capa “Os Miseráveis — Nunca houve tanta gente morando na rua”, a revista mostrou que, 27 anos atrás, também já se conhecia a fundo a desigualdade e mesmo assim quase nada foi feito.
A reportagem abria com o drama de uma reintegração de posse em um imóvel de Diadema, na Grande São Paulo, que terminou com a morte de dois sem-teto. E seguia assim o texto:
“Bem-vindos, brasileiros dos anos 90, a um dos espetáculos mais em voga no repertório atual das descamisadas e descamisados deste país. Na semana passada, ele esteve em cartaz em Diadema, com cenas explícitas de violência, mas pode ser presenciado todos os dias, em qualquer horário e sem pancadaria, em qualquer grande cidade do Brasil. Pior ainda, não é mais preciso, para vê-lo, passar perto de uma favela, de um cortiço ou de uma área invadida. Basta olhar para as calçadas, debaixo dos viadutos ou de outros lugares mais ou menos públicos, e lá estarão seus protagonistas — gente que mora na rua, em número cada vez maior, miserável demais para viver numa favela, e que vai deixando de ser vista apenas como um incômodo estético para transformar-se numa das mais terríveis condenações do ‘apartheid’ social estabelecido no Brasil.
(…) O real problema que o Brasil tem para discutir, entretanto, chama-se miséria e envolve 60 milhões de cidadãos que não têm casa, nem escola para colocar os filhos, nem esperança. É uma população maior que a de países como a França e a Coreia do Sul, e equivale a duas vezes a da Argentina. É esse o problema, é dele que derivam episódios como o de Diadema e é por sua causa que há cada vez mais gente morando na rua — talvez e nenhuma outra época, na verdade, a miséria tenha se tornado tão maciçamente visível no cotidiano do país como agora.”
A matéria seguinte, na mesma edição de 1990, Cidadãos da Rua, traz inúmeros perfis de brasileiros abaixo da linha da pobreza nas grandes cidades e a afirmação de que, até então, nunca o problema havia sido tão nítido. “Nunca, nos 500 anos de história do Brasil, a miséria foi um dado tão chocante e tão visível a olho nu. No inverno de 1989, a prefeitura de Porto Alegre recolheu a seus albergues 914 pessoas que perambulavam pelas ruas da cidade. Este ano, foram 3 100. Em 1984, a Fundação Leão XIII, encarregada de auxiliar a população carente que circula pelo Rio de Janeiro, atendeu 3 800 cidadãos — esse número foi de 49 000 até outubro de 1990. Calcula-se que o número de pessoas que residem nas ruas de São Paulo tenha passado e um ano de 60 000 para 100 000 e, no Recife, essa cifra já chega a 120 000.”
Em outro trecho da reportagem, a constatação desumana de que “o Brasil, ao longo das últimas décadas, só tem conseguido crescer produzindo um número cada vez maior de miseráveis”. Vale ler a matéria na íntegra.
Em 2002, o tema voltou a ser destaque na capa da edição de VEJA de 23 de janeiro. Na matéria Paradoxo da Miséria, a informação “inexplicável” de que 23 milhões de brasileiros se encontravam na categoria de pobreza extrema.
Leia parte do texto de 2002:
“Miséria é palavra de significado impreciso, como de resto a maior parte dos termos que se referem à camada menos favorecida da sociedade. O que exatamente quer dizer “pobreza” ou “indigência”? Como identificar um pobre? Como ter certeza de que existem 14,5% de miseráveis, e não 10% ou 20%? Não haveria subjetividade demais nessas estatísticas? Em geral, cada um percebe a miséria por sua experiência pessoal, como definiu a americana Mollie Orshansky, uma das maiores especialistas no assunto: “A pobreza, tal qual a beleza, está nos olhos de quem a vê”. Para efeito estatístico, no entanto, os estudiosos chegaram a uma definição quase matemática sobre o que são miséria e pobreza. Conseguiram estabelecer duas grandes linhas. Uma delas é a linha de pobreza, abaixo da qual estão as pessoas cuja renda não é suficiente para cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana: alimentação, moradia, transporte e vestuário. Isso num cenário em que educação e saúde são fornecidas de graça pelo governo.
Outra é a linha de miséria (ou de indigência), que determina quem não consegue ganhar o bastante para garantir aquela que é a mais básica das necessidades: a alimentação. No caso brasileiro, há 53 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Destas, 30 milhões vivem entre a linha de pobreza e acima da linha de miséria. Cerca de 23 milhões estariam na situação que se define como indigência ou miséria.
Reforçando, para evitar confusão: a pobreza no Brasil é formada por dois grandes grupos. Há 30 milhões de pessoas vivendo com extrema dificuldade, donas de uma renda mensal per capita inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões que vivem ainda em pior situação, sobrevivendo de maneira primitiva. Não ganham dinheiro bastante para comprar todos os dias alimentos em quantidade mínima necessária à manutenção saudável de uma vida produtiva — ou seja, algo em torno de 2.000 calorias. Isso equivale a uma dieta diária que inclui um pão e meio, cinco colheres de arroz, meia concha de feijão, um copo de leite, um bife de 100 gramas, meio ovo e mais três colheres de açúcar, óleo de soja, farinha de trigo, farinha de mandioca e margarina. Os miseráveis não têm acesso a essa cesta biológica básica. Esse é o chamado flagelo social. Não se sabe ainda quais serão os candidatos a presidente, mas já se sabe qual será o maior desafio do novo governo: reduzir esse contingente de padrão africano.”
Confira o restante da reportagem clicando aqui.