O PT sem Lula se esfacela, e ele já se prepara para 2014. Ou: o palestrante de luxo faz proselitismo com o lixo
Escrevi certa feita que o PT, como o conhecemos hoje, tem um tempo de duração: o tempo que durar Luiz Inácio Lula da Silva. Depois se esfacela em grupos menores, organizados em torno de interesses corporativos. Não imagino que configuração possa vir a ter. Uma coisa é certa: como está, não fica. Mas isso também […]
Escrevi certa feita que o PT, como o conhecemos hoje, tem um tempo de duração: o tempo que durar Luiz Inácio Lula da Silva. Depois se esfacela em grupos menores, organizados em torno de interesses corporativos. Não imagino que configuração possa vir a ter. Uma coisa é certa: como está, não fica. Mas isso também indica que o Ogro Amoroso, o Shrek da política, tentará dar sobrevida ao partido que há e já começa a amaciar o terreno para um eventual retorno. Pode até ser que a presidente Dilma Rousseff venha a achar o caminho da roça. Hoje ela está perdida. Tudo o mais constante, o candidato do PT à Presidência em 2014 chama-se Lula. Por quê? Vamos ver.
O PT está bastante atrapalhado, dividido em correntes, batendo cabeça em público e mandando companheiros para a guilhotina. O que se passa? Pela primeira vez desde 1980, Lula não pode comandar o partido de modo imperial, impondo a sua vontade com mão de ferro. Petistas jamais respeitaram a distinção entre administração e partido quando no Executivo, pouco importa a esfera: municipal, estadual ou federal. Um sempre serviu como fator de ajuste do outro. Ocorre que a presidente da República é Dilma Rousseff, que tem, por força do cargo, autoridade máxima no governo, mas, à diferença de Lula, não tem influência nenhuma na legenda, onde ainda é vista como uma novata, alguém não plenamente integrada à metafísica da sigla. Se ele podia mudar o partido para servir a seu governo ou mudar o governo para servir a seu partido, ela não tem como fazer esse jogo de compensações.
Cinco meses de uma relativa ausência de Lula foram suficientes para que grupos petistas começassem a se engalfinhar. Não se trata daquela velha divergência traduzida em correntes ideológicas, que organizam propostas a serem debatidas em congressos partidários. Nada disso! O que vemos é a vulgar, tradicional e comezinha disputa pelo poder. O Lula presidente, que também mandava no PT, daria um murro na mesa, e as disputas estariam encerradas. Ela não pode fazê-lo porque não tem vida partidária. O, digamos assim, petismo profundo a vê como uma espécie de funcionária de turno de um projeto de poder — que só tem funcionalidade plena com Lula no comando porque só ele unifica as divergências.
O Apedeuta bem que tentou entrar em cena e pôr as coisas no seu devido lugar — segundo o seu ponto de vista ao menos. E o fez num encontro com caciques peemedebistas, com quem compõe o condomínio. Piorou tudo! E a razão é simples: se ele começa a se mexer muito dentro do partido, esvazia a autoridade dela dentro governo, porque as duas instâncias se comunicam e se confundem. No fim das contas, a dificuldade de Dilma está menos em governar o país, que ela pode ir tocando com essa pastosa mediocridade, do que em governar o PT, onde não apita nada. E há muitos descontentes lá. Qualquer um que conheça um pouquinho os bastidores da política sabe que foi o fogo amigo que derrubou Antonio Palocci. As oposições não tinham interesse na sua queda. Ao contrário: viam nele um interlocutor confiável. Foram as aspirações contrariadas das muitas corporações de ofício que derrubaram o agora ex-chefe da Casa Civil.
A fantasia da pobreza altiva
Mais do que assentado numa teoria do poder, o PT se sustenta numa fantasia que, em muitos aspectos, as esquerdas tradicionais diriam até bastante “reacionária”. E que fantasia é essa? Vamos à receita:
a) o “oprimido”, o “povo”, deve se organizar em movimentos sociais;
b) os movimentos sociais devem formar um partido, que vai disputar o poder para arrancar concessões das elites;
c) uma vez no comando do estado, esse partido se incumbirá, claro!, de implementar medidas que melhorem um pouquinho a vida do “povo”.
Mas atenção! Os “pobres” e “oprimidos” têm de continuar a representar o seu papel de “pobres” e “oprimidos”. É essa condição que lhes confere uma identidade política e uma identidade social. O petismo não se propõe a pôr um fim à pobreza; pretende, isto sim, é fazê-la orgulhosa de si. Afinal, como manter o enredo eliminando seu protagonista? O protagonista do PT é o pobrismo.
Esse modelo supõe a existência de um demiurgo, alguém que seja capaz de se apresentar como aquele que saiu de baixo e tem capacidade de transitar no mundo das elites. Essa fantasia é a expressão popular de um partido que hoje congrega poderosos interesses de corporações e vive uma obvia crise de liderança por força da circunstância: Lula não pôde disputar o terceiro mandato consecutivo.
Luxo e lixo
Vamos ilustrar a que aqui vai exposto conceitualmente com fatos. O Apedeuta esteve ontem num evento em Curitiba chamado Encontro Nacional das Mulheres Catadoras de Material Reciclável. Sim, são mulheres que vivem da reciclagem do lixo doméstico. Ele, obviamente, discursou. O homem que ganha milhões falando à Microsoft, à Telefonica, à LG ou a financistas de Londres, não teve dúvida:
“Eu dizia para vocês que eu sei de onde eu vim e sei para onde vou; portanto, a mesma mão que cumprimenta um rei ou uma rainha é a mesma mão que cumprimenta uma catadora de papel”.
A fala seria apenas a expressão do populismo mais vagabundo não fosse a síntese não exatamente do PT, mas de Lula — ocorre que sabemos que só existe PT havendo um Lula; o resto é delírio do Zé Dirceu… Vejam: ele é aquele que veio do povo, o lugar social onde se encontram as catadoras, mas passou a freqüentar palácios de reis e rainhas, o que elas nunca farão. Não é necessário! Têm a mão dele!
Lula se comprometeu com a causa das “catadoras”. A sabedoria convencional diria que a reciclagem de resíduos, do lixo, deveria ser uma política de estado, não um “movimento social”. No Brasil petista, ela se transforma num “saber” político, a expressão de uma verdade do “povo”, uma “reivindicação”. Essa fantasia é a essência do petismo, e ela precisa de um Lula para se realizar. Ou vocês imaginam Dilma Rousseff ou Gleisi Hoffmann ali, a dizer: “Eu sei de onde eu vim”?
A crise em curso no governo e no PT e a movimentação de Lula trazem uma boa e uma má notícia: a má é que ele vai começar a pavimentar o caminho para tentar voltar caso Dilma não encontre o rumo, o que é bem possível. A boa é que o conjunto da obra indica que o PT — refiro-me ao partido mesmo — está com os dias contados, ainda que demore um pouco…