Tom Jobim: Brasil ama Garrincha, mas precisa aprender a amar Pelé
Relembre frases do maior compositor brasileiro do século XX, que faria 90 anos nesta quarta-feira
O maestro Tom Jobim, que faria 90 anos nesta quarta-feira, foi também um grande frasista, contador de causos e piadista. Reportagem de capa de VEJA de 14 de dezembro de 1994, sobre a morte do compositor, reuniu algumas de suas melhores tiradas – e também desabafos:
Vivo me justificando das coisas que não disse. O pessoal inventa tanta coisa que no fim você não tem tempo de ser todas elas.
Hoje em dia eu sou arrimo de família. Tudo é comigo: papai, furou um pneu, vovô, eu estou chegando, etc. e tal.
O voo direto para o Rio acabou. Precisa parar em São Paulo antes. Acabou o samba do avião.
No Brasil é tudo é importado: eu, você, a língua, os índios, a cana-de-açúcar e o café.
Dizem que eu fico copiando música dos outros. Isso me tiraria todo o prazer da criação.
O que balança mesmo é a música dos Estados Unidos, Cuba, Caribe e arredores e Brasil. O resto é valsa.
Minha vida é extraordinariamente monótona. Não tenho nem um robe roxo, que melhora a biografia de tantos compositores.
Vou trocar as lentes dos meus óculos mais uma vez. Já estou na idade de olhar as garotas de longe. E o pior é que você vai ficando mais velho e as moças mais bonitas.
Cada mulher que não tenho é uma música que faço.
O louvor vem do povo, a canalhice da intelligentsia.
Nunca fui um músico profissional, no sentido do compositor que só pensa em música.
Não tenho muito tempo para ouvir música porque eu sou um músico. Como profissional, depois de um dia inteiro de trabalho, horas e horas sentado ao piano, você chega em casa exausto, não quer ouvir mais nada.
Dediquei minha vida à música brasileira, porque já tem francês para escrever música francesa, americano para escrever música americana.
Eu acho que universal mesmo é fazer samba. Quer dizer, um pintor universal é aquele que pinta bem o seu quintal. Agora, se o brasileiro vai querer pintar o quintal sueco, aí já fica mais difícil.
Você ama, ama, ama o seu país. E o país te tortura, te prende, te tira as coisas. Que diabo é isso?
Nunca vi país mais corrupto, mais burocrático do que o nosso.
Quando desabafo digo coisas tristes, que sinto. Mas não sou eu quem fala mal do Brasil. É o Brasil que fala mal do Brasil.
O Brasil tem tudo para dar certo, é um país riquíssimo, onde você pode ter cinco, seis colheitas por ano.
Temos a mania da miséria. O Brasil não pode ver nada dar certo. O Brasil ama Garrincha, mas precisa aprender a amar Pelé. Ele deu certo e o Garrincha morreu na miséria.
“Tom e bom é a mesma coisa”
A mesma reportagem de VEJA colheu o depoimento emocionado do amigo e parceiro de bossa nova João Gilberto:
Antonio Carlos Jobim era um poeta, um filósofo. Tom era bom. Sabe, um homem bom? Pois é: era Antonio. Tom e bom é a mesma coisa. Divertido, inteligente, tão cheio de sensibilidade. Tom é uma das melhores pessoas que conheci na vida. Dizer assim, ‘das melhores’, é pouco. Conheci muitas pessoas boas, mas Tom era espetacular. Um escândalo. Nem sei dizer.
Lembro de Tom na gravação de Chega de Saudade. Ele estava ali, na cabine, e eu no estúdio. Tom estava olhando, tinha os olhos emocionados, entusiasmados. Para fazer ‘O Amor, o Sorriso e a Flor’, subi a serra, até Petrópolis. Cheguei à noite, chovia, o carro encalhou, o trator veio tirar. Tom gostava de bichos, de plantas. Ele prestava atenção numa formiga passando. Imitava o barulho do macaco. Ele falava de pássaros, assobiava. Era um brasileiro.
Lembro de Tom no concerto no Carnegie Hall. Ele moço, tocando piano. Nós ali, fazendo música. Nós ali, representando o Brasil. A gente querendo homenagear o Brasil, querendo o bem do Brasil. Nós querendo fazer uma coisa boa para o país. Um Brasil que fosse representado pela sua música, uma música bonita. Era uma coisa meio infantil, ilusão da juventude, o que seja. Mas acho que fizemos alguma coisa pelo Brasil. Tom fez tanto pelo Brasil (João Gilberto chora, chora, chora). O Brasil já foi tão bonito…
Estou aqui, falando no telefone sem fio, de frente para a janela que mostra o Rio de Janeiro. Estou vendo o mar, a Lagoa, os morros. O Rio de Tom. O Rio de Janeiro do meio amigo Antonio Carlos Jobim. Mas agora onde está Tom? É Drummond, de quem Tom gostava tanto, quem pergunta: ‘E se todos nós vivêssemos?’
Não é fácil ser Tom Jobim
Tom morreu nos Estados Unidos em 8 de dezembro de 1994, aos 67 anos, em decorrência de embolia pulmonar, dois dias após se submeter a uma cirurgia para remover tumores da bexiga. Na semana anterior, VEJA noticiava o lançamento de Antônio Brasileiro, novo disco do “garoto de Ipanema”:
Novo? Mesmo com 65 000 cópias vendidas em três semanas e a certeza da gravadora de que o autor passará o Natal com mais um item na sua já formidável coleção de troféus, o Disco de Ouro das 100 000 cópias, a crítica não se intimidou como tanta glória. Elogiou, sim, como sempre, mas resolveu mostrar serviço arregaçando as mangas para reclamar que a maioria das quinze faixas não é inédita. Em momentos assim, realmente não é fácil ser Tom Jobim.
A reportagem de VEJA constatava que, aos 67 anos, Tom já havia sido “devidamente noticiado, biografado e premiado” e que agora estava pensando em passar a falar de si mesmo na terceira pessoa. “É para não pensarem que é você mesmo, tem umas horas em que a gente quer esquecer quem é.”
“Às vezes acho que sou de outro planeta”
O maestro recorria a frases assim para afugentar a tietagem: “Quero esquecer o Tom Jobim. Eu não sou nem nunca disse que era Tom Jobim”, como mostrou reportagem de capa, dez anos antes. E usava óculos escuros para confundir os mais insistentes: “Os chatos precisam de atenção pupilar”.
Bar hoje para Tom só a Churrascaria Plataforma, grande como o Maracanã, onde os chatos sempre sabem que, acuado, ele tem como escapulir. Nada que evoque as noitadas épicas dos anos 60, em que Tom Jobim, um dos raros boêmios bem-educados de sua geração, bebia, mas não brigava. Na folha corrida, ficaram apenas histórias engraçadas, tiradas bem-humoradas. Como na vez em que chegou a um restaurante às 4 horas da manhã e foi atendido por um garçom solícito e insone. Perguntou o que tinha de bom para comer e ouviu logo uma resposta categórica: “Nós temos de tudo cavalheiro”. “Então eu quero rã com bertalha”.
A reportagem de 24 de outubro de 1984 também narrava algumas manias e excentricidades de Tom, como o súbito desejo de aprender francês (“É uma derradeira vaidade, falar uma língua absolutamente desnecessária”), sua coleção de dicionários, incluindo cinco de rimas e três de português-tupi, e as horas passadas espiando passarinhos, com um binóculo Nikon, na mata atrás de sua casa.
“Eu segui essa linha da natureza para ficar brasileiro”, justifica, para dizer que no caos urbano não encontra nenhuma inspiração. “Não vou fazer músicas sobre este cotidiano louco. Às vezes acho que sou de outro planeta. Posso acabar sozinho na Amazônia asfaltada, segurando um matitaperê empalhado no dedo.”