“Vamos virar essa página. Faz outro filho”. (Por Ruth de Aquino)
Do padrasto Jairinho para o pai de Henry
Dói escrever sobre o Mal. Personificado num padrasto e numa mãe, brancos, ricos, bonitos e de olhos verdes. O que faz um monstro como esse Dr. Jairinho espancar até a morte seu enteado de 4 anos, com pouco mais de 1 metro de altura e pesando 20 quilos? Covarde. Cínico. O pai de Henry, Leniel Borel, chorava na emergência do hospital, onde o garoto chegou morto de madrugada, quando ouviu palavras de consolo de Jairinho: “Vida que segue, vamos virar essa página. Faz outro filho”.
Vereador e médico. Nomeado para o Conselho de Ética da Câmara três dias após a morte do menino. Com histórias anteriores de agressões a mulheres e crianças, agora reveladas. Uma caiu da rede, outra foi afundada na piscina, ele subiu na barriga de mais uma, torceu o braço de outra e tem a que quebrou a perna num passeio. Crianças vomitavam ao ver Jairinho. Mulheres tinham medo de denunciar, por seu poder. A ex-esposa Ana Carolina, que teve dois filhos com Jairinho, chegou a fazer exame de corpo de delito comprovando lesões por chutes, equimoses e hematomas, mas depois retirou a denúncia. Vizinhos relataram gritos semanais de socorro. Eu desejaria prisão perpétua se houvesse.
O que faz uma mãe como Monique, professora que ganhou um cargo no Tribunal de Contas ao ir morar com o vereador, ser cúmplice desse crime abjeto? Ela sabia das agressões ao filho. A babá Thayná relatou tudo no dia 12 de fevereiro. Do quarto fechado, na companhia apenas do padrasto e na ausência de Monique, o menino saiu mancando, com dor na cabeça. “(Jairinho) deu uma banda, chutou ele, falou que ele perturba a mãe, se contar vai pegar ele”. O delegado Henrique Damasceno disse que Monique tinha obrigação não só moral, mas legal de denunciar as torturas a seu filho ou afastar o agressor. Pela lei, tinha de protegê-lo. Ela cogitou instalar uma microcâmera na conversa com a babá. Nada fez.
Monique mentiu em quatro horas de depoimento, disse que a família era harmoniosa e que o filho caiu da cama, estava com os olhos revirados, sem respirar direito, foi acidente doméstico. Não sei se Monique agora vai alegar que Jairinho tinha dado a ela um comprimido para dormir. Não sei se escutou a sessão fatal de espancamentos na madrugada de 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Só ouvimos dizer que Monique foi a um salão de beleza fazer manicure, pedicure e escova, por R$ 240, no dia seguinte à morte do filho. Escondeu-se por fim com Jairinho na casa de uma tia do companheiro, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, num endereço fora dos autos, desconhecido dos policiais. Ao serem presos, ela e Jairinho tentaram jogar pela janela seus celulares.
Dr. Jairinho era vereador em quinto mandato pelo Solidariedade (quanta ironia). O partido já o afastou. Ele tentou de tudo, como um mau político, para se safar das apurações da polícia. Filho de coronel PM e deputado estadual, ligou para o governador Cláudio Castro. Em vão. A prisão aconteceu depois de investigação aparentemente irretocável. Perícia em 11 telefones apreendidos. Dezoito depoimentos. Simulação do crime. Ainda está em curso o inquérito, mas a polícia não tem dúvidas sobre o autor do homicídio duplamente qualificado.
Uma evidência, além das mensagens da babá e dos testemunhos das ex, é a pressa do vereador em conversa com alto executivo da Saúde, após várias ligações de madrugada, para evitar o laudo do IML: “Agiliza ou eu agilizo o óbito? Vê se alguém dá o atestado para a gente levar o corpinho. Virar essa página”. A obsessão de Jairinho é essa. Virar a página.
A violência contra crianças – e idosos – em casa é mais comum do que se pode imaginar. É muita crueldade. Piorou na pandemia, devido ao confinamento. Por que vizinhos escutam gritos de socorro e nada fazem? Por que Henry precisou morrer para que um torturador serial de mulheres e crianças fosse preso? Mulheres e mães costumam, sim, proteger e acobertar seus companheiros, mesmo quando são vítimas. Infelizmente. E mulheres e mães também podem espancar e matar, embora seja um fenômeno mais raro que a violência masculina.
A Justiça agora proibiu a pastora Flordelis de sair de casa à noite. Ah, bem! De dia, pode. Acusada de tramar o assassinato do marido e pastor Anderson, com fartura de provas, continua a ser deputada federal e ganhando tudo a que (não) tem direito. Desligou sua tornozeleira eletrônica em março oito vezes, uma delas por 13 horas. O delegado Henrique Damasceno, da 16a DP, na Barra da Tijuca, é muito mais competente do que a Câmara em Brasília, que não afastou a pastora e cantora gospel nem por “quebra de decoro”. Senhores deputados, tomem vergonha e cassem Flordelis.
(Transcrito de O Globo)