Nos últimos dois anos, acostumamo-nos a uma certa inércia da população, que parece ter perdido o gosto de ir às ruas para protestar. Vimos manifestações de bolsominions aqui e ali, sobretudo em frente aos prédios do STF, que ameaçavam invadir, e do Planalto, para saudar seu mito. O pessoal da oposição e dos movimentos populares também promoveu protestos Brasil afora, ficou na frente do Masp, na Paulista, mas acabou amarrado em casa pelo discurso responsável do distanciamento na pandemia. As redes, de alguma forma, substituíram as praças para a classe média e setores mais politizados. As panelas serviram, fora dos fogões, para desopilar alguns fígados e mostrar insatisfação.
Será um equívoco, porém, imaginar que esse estado de coisas – o povo parado diante dos absurdos governamentais – seja permanente, um “novo normal”. Há conjunturas e conjunturas, e o fato de o pior presidente do Brasil desde a redemocratização não ter sido alvo de marchas e movimentos de rua, e nem de qualquer um dos 51 pedidos de impeachment até hoje apresentados, será certamente objeto de futuros estudiosos da história e da sociologia. O que essas ciências costumam mostrar, porém, é que essas situações são voláteis, e os humores da opinião pública e das massas podem virar rapidamente.
A pandemia – e, acima de tudo, o auxílio emergencial – manteve muita gente em casa. Alguns até satisfeitos, conforme as pesquisas sobre a popularidade presidencial. Mas a virada do ano trouxe, além da visível saturação das pessoas em relação ao distanciamento social, uma enxurrada de más notícias. Recrudescimento da Covid-19 em meio ao recorde de 14,4% no desemprego e o fim dos auxílios – tanto o emergencial, que chegou a ser pago a uma legião de 67 milhões de pessoas, quando aquele que ajudava as empresas a reduzir as jornadas e os salários de seus funcionários.
O coronavírus, e todo o seu horror diante da incompetência do governo na questão sanitária, pode não ser um ingrediente novo. Mas a falta de condições mínimas de sobrevivência de muita gente que vai parar de receber o auxílio e continuar desempregada é. Somada ao cenário de mortes, hospitais lotados e a demora na vacina, enquanto outros países já estão imunizando suas populações, pode ser nitroglicerina pura.
Há pelo menos duas décadas o Brasil não via cenas dramáticas de pessoas esfomeadas saqueando supermercados, como ocorria nos anos 80 e 90 no auge das secas do Nordeste, e nem de gente morrendo de fome na rua. Chegamos até – ingênuos! – a pensar que esses dias tristes da nossa história haviam ficado para trás. Mas o governo Bolsonaro trouxe de volta as piores assombrações. Inclusive o risco de convulsão social, diante da qual não sabemos como irá agir.
Helena Chagas é jornalista