Fui acometido nesses dias a partir da leitura de um poema sem nome de Fernando Pessoa. Escrito em 2/10/1919 no livro de Outros Poemas, editora Nova Fronteira, escreve o poeta: “A criança que mora à beira do cais/Nunca andou de navios./Deseja com ânsia febril ver mais/ E ir para os mares universais,/ noturnos e frios./ Mas nunca foi mais que à beira da água,/Nunca melhor viu/ Que a ida dos barcos, e a sua mágoa, /Que os outros partirem”.
A metáfora que capto nesses versos me deixam triste, quando faço uma analogia com nossas crianças carentes do Brasil. Crianças analfabetas, várias vezes sem ter o que se alimentar, escola ficou impossível e o grau de escolarização é péssimo, um dos piores do mundo. Não têm perspectivas de conhecer outros mares, outros espaços de vida, de trabalho e de cultura que outros privilegiados adquirem.
São crianças carentes, doentes, às vezes subnutridas, verminóticas, desidratadas, fatores esses que comprometeriam um regular rendimento escolar. Abandonadas, sem aconchego dos pais que, quando não as abandonam ficam o dia todo procurando alguma comida para trazer para casa.
“Nunca andou de navios” é a metáfora que seu espaço de terra e mar são impossíveis, são crianças mortas-vivas, sem noção do mundo a não ser um mundo hostil, ameaçador e algo como jamais proporcionasse desenvolvimento físico e psicológico. Crianças do nosso Brasil, crianças que poderiam ser os jovens e adultos do futuro procurando fazer um país civilizado e transformado numa nação de ideologia humanista social.
Essas crianças que não brincam na beira do rio, que trazem o trauma e a mágoa do abandono, amanhã provavelmente serão os menores infratores que roubam, assaltam, talvez não por perversidade, mas como instinto de sobrevivência. Crianças lânguidas, magras, caquéticas, de órbitas fundas desidratadas, de olhares carentes, mesmo que sejam meigos, mas a mostrar a angústia da vida morta, do sem futuro, da agonia de serem mortas ou de morrerem nas avenidas, nos viadutos, nas balas perdidas ou nas infecções e infestações endêmicas da falta de saúde pública.
Pobre Brasil das desigualdades e da cultura prevalente, onde o mercado e a tecnologia estão sempre a serviço dos governantes e das grandes empresas. Crianças escravizadas nos partidos da cana-de-açúcar, nas esquinas implorando esmolas, nas ruas estendidas por projéteis desconhecidos(?). Esse é o nosso país, das favelas das cidades à beira do cais! O caos!
Carlos de Almeida Vieira é alagoano, residente em Brasília desde 1972. Médico, psicanalista, escritor, clarinetista amador, membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalytical Association