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Desdemocratização (por Gaudêncio Torquato)

Mais de 100 países perderam qualidades democráticas

Por Gaudêncio Torquato
Atualizado em 8 dez 2020, 16h39 - Publicado em 20 set 2020, 10h00

A democracia desce a escada que permitiu sua ascensão desde ágora, em Atenas, em que os cidadãos exerciam seu dever de servir à polis. Em alguns momentos, travou gloriosas lutas contra os sistemas autoritários, batendo forte em ditaduras. Ganhou e perdeu.

Passadas apenas duas décadas deste século, a democracia enfrenta retrocessos, submissão ao autoritarismo, quebra de suas estacas, como as liberdades de manifestação e de associação, direitos das minorias, discriminações e conflitos vários.

Bandeiras são trocadas. A maior democracia do mundo não é mais a Índia. Um estudo de nome de DeMax, feito na Alemanha, insere esse país de mais de 1,3 bilhão de habitantes na categoria de regime híbrido, após análise de 200 fatores, a partir de liberdade política, igualdade e sistema legal. A Índia e outras Nações atravessam o status de desdemocratização.

Pelo estudo, um grupo de 13 países sujou sua democracia em 2019 em função da perda de liberdades, violação de direitos humanos, colisão com Judiciário etc. Apenas 3 deixaram a autocracia (governo da visão de uma só pessoa): Maldivas, República Centro-Africana e República Dominicana. Mais de 100 perderam qualidades democráticas e 69 registraram pequenos avanços.

E por que a volta ao autoritarismo? Um denso conjunto pode explicar. Lembrarei uns poucos. A democracia representativa vive uma crise crônica sob o fluxo do arrefecimento ideológico, pasteurização partidária, fragilidade dos Parlamentos, desideologização das oposições, liberalismo, socialismo ou social-democracia sem respostas adequadas às demandas, mudança de paradigmas (luta de classes abre diálogo entre patronato e setor laboral), novos polos de poder, organicidade social. Com o descrédito da política, a sociedade cria núcleos e movimentos de pressão.

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Também a globalização acirra tensões. Maior fluxo de mercadorias gera um neo-nacionalismo e movimentos em defesa das produções nacionais, como mostram o Brexit e as relações China/EUA. O populismo ganha musculatura, o que expõe o dilema: como fortalecer o colchão social sem recursos? As economias cavam seu próprio buraco.

O estudo mostra que se forma uma convergência em direção ao centro, expandindo regimes híbridos. Caso bem conhecido é o nosso. Ao lado da Hungria, Turquia e Sérvia, o Brasil aparece de forma emblemática. Nossa pontuação caiu 32% na última década, de 79,6 (numa escala de 0 a 100) em 2010 para 60,2 em 2019.

Sabemos as causas: corrupção, más administrações, descontroles, discriminação, tensões entre os Poderes, fisiologismo, visões radicais e conservadoras, filhotismo político, ausência de reformas vitais, ataque aos meios de comunicação, fake news, negação da ciência, defesa de ditaduras etc.

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Desdemocratização chega até aos EUA, que deixaram o nível superior desse regime. Hoje são considerados pela Economist como uma democracia falha. Haverá conserto? Basta que o ideário democrático faça parte de nossas vivências. Pela grandeza territorial e suas riquezas, pela índole ordeira e acolhedora de seu povo e, claro, com a diminuição da corrupção, ainda poderemos aparecer na galeria das grandes democracias.

 

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político

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