Pela segunda vez o presidente desperdiçou uma oportunidade de ouro para retirar o Brasil da condição de pária no cenário internacional, ao discursar na abertura da Assembleia da ONU. Se no ano passado Jair Bolsonaro proferiu suas palavras com faca nos dentes e sangue nos olhos, este ano adotou um tom alguns decibéis mais abaixo. Nem por isso deixou de focar no seu público interno, construindo uma narrativa onde tudo vai bem no país de Alice. Seu governo foi um tremendo sucesso no combate à pandemia e o Brasil é exemplo para o mundo em matéria de política ambiental.
O fato de seu ufanismo não bater com a realidade não é um detalhe. O mundo não se deixa enganar por palavras. A ele interessa fatos concretos e, neste particular, o presidente não disse a que veio. Jogou a culpa pelas queimadas nas costas dos índios e dos caboclos da Amazônia.
Também combateu moinhos de ventos.
Segundo ele, o Brasil é vítima de uma campanha de desinformação na questão amazônica, orquestrada por interesses protecionistas de países concorrentes do nosso agronegócios. A versão de uma trama internacional também foi divulgada na véspera pelo general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. De acordo com o general “há um complô promovido por países, entidades e personalidades internacionais” – leia-se o ator Leonardo DiCaprio – “com o objetivo de derrubar o governo Bolsonaro”.
A viseira que impede o governo de enxergar a realidade é uma mentalidade que vê conspiração em tudo, talvez herdada de parte da caserna e dos tempos da guerra fria. Os militares sempre elegeram inimigos externos associados a uma quinta coluna que agiam contra a soberania nacional. No passado, eram os comunistas e seus agentes internos. Hoje são os países da União Europeia e as ONGs que atuam na região amazônica.
De acordo com essa ótica, a Amazônia é alvo da cobiça internacional e a maneira de assegurar a soberania nacional sobre a região é a sua ocupação, mesmo que seja por um modelo predatório pautado na exploração irracional da madeira, da pecuária extensiva e do garimpo ilegal.
São eles os principais agentes do desmatamento e das queimadas e não os caboclos e índios, como quer fazer crer o presidente.
Esse modelo está em absoluta contramão da tendência mundial do próprio capitalismo, que marcha para uma economia de baixo carbono e para um modelo sustentável. As modernas empresas passaram a incorporar valores como responsabilidade social e sustentabilidade em sua governança. Cada vez mais os países desenvolvidos levam em conta questões ambientais nas suas relações internacionais, enquanto na Europa os partidos verdes vão se consolidando como uma força política expressiva.
A relevância do meio ambiente na agenda mundial pode dar novo salto caso o democrata Joe Biden ganhe a eleição americana. Nessa hipótese, haverá mais pressão sobre o governo brasileiro.
As pressões internacionais decorrem principalmente desses fatores, embora não se ignore a existência de interesses protecionistas. Mas eles não são o determinante.
Para fazer frente à nova realidade, não basta apenas o governo brasileiro afirmar enfadonhamente que temos a matriz energética mais limpa do mundo e uma legislação ambiental exemplar, se os olhos do planeta enxergam, por meio de satélites, a expansão do desmatamento e das queimadas.
O maior problema do discurso do presidente na ONU foi não ter contribuído em nada para dirimir as desconfianças do mundo. Ao contrário. Faria melhor se tivesse entendido a Amazônia como um grande ativo do Brasil, que poderia ser usado em favor do país, mostrando nosso compromisso com um modelo sustentável e aberto à cooperação internacional. Essa demonstração exigiria uma nova postura diante dos órgãos de fiscalização do meio ambiente, que foram enfraquecidos pelo seu governo.
O acesso do nosso agronegócio ao mercado dos países desenvolvidos e a atração de investimentos externos dependem muito de um compromisso claro e insofismável do Brasil com um novo padrão de exploração da Amazônia e de defesa do meio ambiente.
Essa mudança virá, mais dia menos dia, até porque passa a ser de interesse do capitalismo brasileiro. Se há alguma luz no túnel é o entendimento entre ambientalistas e grandes empresas, parte delas do agronegócio. Recentemente eles se uniram por meio da Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura para cobrar do governo medidas concretas de defesa ambiental. Gigantes do agronegócio como Marfrig, Cargil e JBS já perceberam que perderão acesso ao mercado mundial se não houver uma mudança de rota na política ambiental do governo.
Só Bolsonaro não caiu na real.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação. Escreve às 4as feiras no Blog do Noblat.