
O filósofo Sêneca alertava: “não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que já passou por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores”.
Motivo-me, mais uma vez, a deixar de lado a análise política para percorrer o labirinto da consciência e tentar ver como deixei a vida passar sem perceber. E o que me leva a isso é a sensação de que, no meio do furacão desencadeado pelo Covid-19, a vida pode me escapar num átimo de segundo. A eternidade está ali, a um palmo.
E como percebo os dribles que às vezes me fazem pensar que continuo no vigor da adolescência, com a capacidade de me adaptar aos sabores e dissabores da vida? É fácil. Basta ir ao espelho e ver que o tufo de cabelo deu adeus, criando duas entradas profundas na testa e abrindo uma seca várzea no cocuruto.
Fossem essas observações estéticas as únicas da memória, os sentimentos não seriam tão doloridos. Mas há vazios mais profundos. A percepção de que eu poderia ter conversado mais com meu pai, que nasceu no final do final do século XIX, foi autodidata, político, fazendeiro e, sobretudo, uma pessoa que acolhia bem os mais carentes. O silêncio estava ali ao nosso redor, mesmo que ele tivesse mil perguntas a fazer ao filho que só o via nas férias. Podia ter aprendido mais com ele naqueles tempos de muito trabalho, honra à palavra dada, compromisso com a verdade, zelo pelas coisas.
A amizade é a cola da fraternidade e da solidariedade. Os amigos fazem brotar os valores do compartilhamento numa sociedade mais convivencial. E o que ficou deles? A rotina do cotidiano cria oceanos entre os amigos, os laços vão se desmanchando. Percebo que deixei a vida se esvair pelo distanciamento, ao esquecer nossos caminhos encruzilhados no passado, ao entrar na corrida pela competitividade, reconhecendo que algumas decisões podem corroer a humanidade que nos habita.
“Olhe a régua, olhe a régua”, sempre nos alertava o amigo Vanderlei, neurocirurgião natural da Paraíba e hoje também habitante desta cidade. E mostrava: até aqui, a régua marca 50, apontando para o meio. Quando passa daqui, a régua costuma apressar o tempo. Eu me lembro dessa régua e vejo que o tempo corre. Parece que o alerta da régua foi ontem, mas foi há décadas. O que deixei mais de fazer?
Ler mais. Poderia ter usado o tempo com mais reflexões. E a escrita? Ah, nessa área tenho feito o possível. A ponto de ser cobrado com juros e correção pelo exercício de ficar horas e horas sentado à frente de um teclado. Os juros são uma coluna arrebentada, dores nas articulações…
Constrangido pela fatalidade, sinto que poderia ter sido mais comedido. As coisas ruins se passaram sem que tivesse percebido.
Talvez por isso os velhos álbuns do passado tenham hoje tanta significação. Permitem que vejamos nossos corpos sem barrigas salientes, tufo de cabelo na testa e sem jamais imaginar que, um dia, o danadinho de um vírus fosse capaz de atazanar nossas vidas.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor politico