O povão ficou comovido com o príncipe
Homenagens a Philip são também celebração de virtudes nacionais
“Parece Coreia do Norte”, queixaram-se vários antimonarquistas, encontrando apoio nas mais de 100 000 reclamações feitas à BBC por dedicar as programações de seus vários canais exclusivamente à cobertura da morte do príncipe Philip. Mas o povão não ficou exatamente abalado pelos queixosos. Apesar dos vários apelos para que não se aglomerassem nem deixassem flores, porque não dá para bobear, apesar de a epidemia estar sob controle, milhares de pessoas levaram incessantemente, em silêncio respeitoso, montanhas de buquês para as entradas dos palácios. Por que tanta comiseração pela morte de um homem proibido, pelas convenções e pela lei, de ter qualquer participação nas tarefas de Estado da mulher? Provavelmente porque o príncipe grego de origem dinamarquesa e alemã encarnou várias virtudes que os britânicos gostam de ver em si mesmos: estoicismo no cumprimento do dever, um toque de excentricidade como no interesse por seres extraterrestres e senso de humor que, como pede a própria definição do termo, nem sempre respeitava convenções (no fim desta coluna, um dos melhores exemplos).
Países que celebram a si mesmos costumam ser bem-sucedidos porque os rituais aumentam o senso de pertencimento a algo maior do que apenas as trajetórias individuais e reforçam os laços de solidariedade coletiva. O aparato cerimonial de grande poder simbólico da monarquia enche os corações da plebe de orgulho nacional. Nos Estados Unidos, não existem paradas militares — que Trump, depois de ver a grandeza napoleônica de um desfile do Dia da Bastilha, na França, tentou implantar e levou um não. Mas o povo comemora a pátria e a si mesmo na infinidade de churrascos sob a bandeira de listras e estrelas no 4 de Julho. São atos espontâneos, sem precisar de incentivo oficial nem de aulas de educação moral e cívica, ao contrário da China, onde o regime autoritário monta um teatro de poderio militar no seu dia nacional, Primeiro de Outubro.
“Por que tanta comiseração pela morte de um homem proibido de ter participação nas tarefas da mulher?”
A relação perigosa entre grandes cerimônias cívicas e a manipulação emocional das massas em países fora do espectro democrático já foi dolorosamente demonstrada, desde as paradas coreografadas como cenas de cinema da Alemanha hitlerista até a euforia nacional que a malfadada ocupação das Ilhas Malvinas desencadeou na Argentina da ditadura militar. Mas é uma tolice fazer o oposto: ignorar ou sufocar sentimentos patrióticos como manifestações de ignorância ou atraso político. O próprio Brexit foi impulsionado na Inglaterra pelo sentimento de que o estado-nação e suas manifestações materiais, de bandeiras ao passaporte de capa azul — agora reinstaurado —, estavam sendo solapados pelo europeísmo transnacional.
As homenagens ao príncipe Philip foram exageradas? É possível. Numa sessão especial do Parlamento, nada menos do que 130 representantes discursaram em sua memória. Nem uma vida de quase 100 anos forneceria assunto suficiente para que cada um deles fizesse um discurso original. As opiniões do príncipe sobre a Câmara dos Comuns não eram exatamente segredo. Em visita a Gana, informado que o Parlamento local tinha 200 integrantes, disparou: “É um tamanho bom. Nós temos 650 e a maioria é uma perda de tempo desgraçada”.
Dá para não celebrar um sujeito desses?
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734