Sabe com quem está falando? Com um idiota, claro
Efeito colateral da pandemia, a discriminação social é crime e existe um projeto para punir a arrogância e a humilhação no mesmo patamar do racismo
A discriminação social faz parte da história brasileira, mas houve um tempo em que os discriminados reagiam vigorosamente em alguns episódios.
Em 1556, o bispo Sardinha convenceu tão facilmente os Caetés de suas virtudes e de sua superioridade que os índios o jantaram, determinados a absorver as qualidades de tão elevado espírito.
Um ano depois, o alemão Hans Staden narraria a desventura de se ter metido com os tupinambás, que o engordaram por nove meses e diversas vezes o ameaçaram com o caldeirão.
Passados poucos anos, o militar português Estácio de Sá, protegido e empregado pelo tio governador-geral Mem de Sá, tentou mostrar aos tamoios com quem estavam falando, levou um flechada no olho e morreu de septicemia.
Não cabe certamente estimular reações violentas, mas casos como o da carteirada frustrada do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do empresário que foi gravado humilhando um policial militar em Alphaville, na Grande São Paulo, e do casal carioca que destratou e ofendeu um fiscal da vigilância sanitária, podem e devem ser tratados legalmente em termos mais sérios do que ocorre regularmente no Brasil.
No final desse texto, os mais fortes de estômago podem assistir novamente ao vídeos que documentam essas três histórias, mas ninguém deve alimentar a ilusão de que a mera ampla exposição de comportamentos tão baixos e reprováveis sirva de punição aos protagonistas.
Vítimas desse tipo de discriminação têm o direito de agir contra os agressores judicialmente, exigindo indenizações por danos morais, de preferência proporcionais à condição social e econômica que procuram exibir os que tentaram humilhá-los – seja ela verdadeira ou não.
Entre parêntenses, vale recordar que, em diversos casos, esses shows de arrogância envolvem pessoas acometidas pelo que o cronista Humberto Werneck já classificou de vertigem de sobreloja – gente que se acha e que, na melhor da hipóteses, é lembrada apenas por isso. O filme “O Poço” aborda, entre outros temas, a visão de mundo que anima a bestialidade. Fim dos parênteses.
Mas juridicamente é possível fazer mais, se não para extinguir esses espetáculos da mais legítima falta de educação, pelo menos para puni-la na medida do que exatamente é: crime de discriminação sustentado pela diferença de condição social.
Tramita na Câmara dos Deputados, desde 2005, o projeto de lei 6418, que equipara a discriminação social ao racismo e a outras modalidades de exibição de preconceito. Essa proposta, que já passou pelas comissões de análise preliminar e quase chegou ao plenário para votação em 2016, determina pena de reclusão de um a três anos, além de multa, quando alguém deixar de reconhecer, por exemplo, a autoridade de determinado agente baseado em qualquer tipo de preconceito, incluindo a aparência ou a condição social.
Para que essa proposta ganhe a condição legal basta que o deputado Rodrigo Maia e inclua na pauta da Câmara e que seus colegas, em maioria, votem sim.
O país vive uma quarentena em que casos de discriminação parecem ser um efeito colateral do distanciamento social. Curiosamente, nos três vídeos abaixo, a tentativa de humilhação é praticada exatamente contra servidores que executam trabalho essencial e não podem, como seus detratores, esquivar-se de atividades de risco.
Há muitas especulações sobre como sairemos da crise sanitária, a maioria acreditando que solidariedade e justiça serão conceitos mais respeitados depois dela.
Apenas por segurança, é melhor também ter leis que garantam que quem pensa diferente e age contra esses princípios pague por sua arrogância, insensibilidade, grosseria, negligência e rispidez.
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