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Equidade: STF reconhece existência e peculiaridades de doenças raras

Pela primeira vez, termos como “medicamentos órfãos” e “doenças raras e ultrarraras” foram utilizados em uma decisão da mais alta corte do país

Por Salmo Raskin
Atualizado em 4 jun 2024, 16h04 - Publicado em 27 Maio 2019, 13h20

Há três anos, tivemos a oportunidade de escrever aqui nossa opinião sobre se o Estado brasileiro deve ou não arcar com o tratamento de doenças raras. Depois de quase três anos de espera, no dia 22 de maio de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deu continuidade ao julgamento para decidir questões muito importantes sobre o acesso a tratamentos médicos por judicialização.

O STF decidiu que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvo em casos excepcionais. Concluíram, entre outros aspectos, que é proibido, em todas as esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento experimental ou de uso não autorizado pela Anvisa, tal qual previsto no inciso I artigo 19-T da Lei 8.080/1990. Entretanto admitiram a dispensação vedada no inciso II do mesmo artigo, em hipóteses excepcionais. O Plenário, por maioria de votos, definiu que:

1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais;

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial;

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil; e

4) As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

Os pacientes

Para os pacientes com doenças raras, que dependem de medicamentos órfãos, a decisão foi uma faca de dois gumes. Por um lado, fechou a porta para drogas experimentais que um dia podem se comprovar seguras e eficazes; por outro, pela primeira vez, termos como “medicamentos órfãos”, “doenças raras e ultrarraras” foram utilizados em uma decisão da mais alta corte do país!

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O STF deixou explícito que a raridade da doença pode ser uma condição de exceção à regra, aplicando de maneira exemplar o conceito de equidade, ou seja, tratando aqueles com doenças raras e ultrarraras de forma diferente, para que a justiça seja feita para todos. Tratar a exceção com exceção, e não com regra geral.

Mesmo que uma determinada indústria farmacêutica não tenha solicitado o registro de um medicamento no Brasil, se o medicamento já tiver sido registrado em renomadas agências de regulação no exterior e não existir substituto terapêutico com registro no Brasil, pode ser solicitada, como exceção, a importação do medicamento. Na verdade a decisão do STF manteve a situação muito semelhante ao que já é praticado hoje em dia, visto que tais exceções já constavam em uma resolução da própria Anvisa no ano de 2014, a RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA (RDC) número 8 de 2014, que já autorizava a importação dos medicamentos constantes na lista de medicamentos liberados em caráter excepcional.

Porém, ao meu entendimento, esta decisão do STF foi ainda melhor para os pacientes com doenças raras do que a Resolução da Anvisa, visto que agora está explícito que tais exceções podem ser aplicadas no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras.

Responsabilidade solidária

No dia seguinte, 23/5/2019, o Plenário do STF julgou a matéria constitucional contida no Recurso Extraordinário (RE) 855178 no sentido de que há responsabilidade solidária de entes federados para o fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde. O texto, aprovado por maioria dos votos, diz o seguinte:

“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

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Isto significa que o paciente que entrar com uma ação judicial não precisa mais se preocupar quem será demandado, se a ação deverá ser contra o Município, Estado ou União, pois sempre estes serão solidários, e a autoridade judicial é que vai direcionar contra quem será o ônus final da Ação. Caso o paciente entre contra o Estado, é provável que este vai exigir o ressarcimento da União. A União também poderá ser demandada diretamente pelo paciente.

Dúvidas que ficaram

Apesar de que os temas acima foram discutidos acaloradamente por dois dias consecutivos, restaram algumas dúvidas, no que se refere a autorização excepcional para aos medicamentos ainda não registrados na Anvisa;

  • Apesar do STF ter proibido pedidos judiciais para medicamentos experimentais, ao deixar de especificar o que se entende pelo termo “medicamentos experimentais”, corremos o risco de, na aplicação prática do que foi julgado, os intérpretes colocarem no mesmo balaio medicamentos experimentais e medicamentos que já são aprovados por renomadas agências internacionais e inclusive comercializados em outros países. Qual será o critério para definir se um medicamento é experimental (para os quais o Estado passa a ser isento de arcar com o custo), e quando um medicamento deixa de ser experimental? Se não tiver sido registrado na Anvisa será considerado experimental? Seria melhor se o STF tivesse deixado isto explícito. Em certas ocasiões no passado, gestores de saúde brasileiros, propositalmente ou por ignorância, confundiram o significado de “medicamento experimental” com “medicamento não aprovado pela ANVISA”, com o claro intuito de impedir seu acesso aos pacientes brasileiros, inclusive quando estes medicamentos já são aprovados por renomadas agências de regulação no exterior;
  • Quantas e quais serão consideradas “renomadas agências de regulação no exterior”, necessárias para permitir a importação de medicamentos não registrados na Anvisa, nos casos excepcionais? Se o órgão norte-americano FDA aprovar o medicamento e o Europeu EMA não aprovar, será o suficiente?
  • Apesar do artigo 3º. da Portaria 199/2014, do Ministério da Saúde definir o que é uma doença rara no contexto brasileiro, quando adota o mesmo critério da Organização Mundial da Saúde (OMS) para definir se uma doença é rara (incidência menor que 65 casos em cada 100 mil habitantes), há dúvida como tal critério será aplicado, já que no Brasil não existem dados epidemiológicos sobre nenhuma doença rara. Este ponto deixa mais uma vez claro como fica difícil construir o teto de uma casa quando historicamente se negligenciou o investimento na fundação, nas vigas do alicerce e nas paredes…
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  • As normas anteriormente publicadas pela Anvisa, que se referem ao tema de autorização excepcional para aos medicamentos ainda não registrados na Anvisa, deixam de ter valor a partir de agora? Por exemplo, a RDC 8 de 2014, que já autorizava a importação dos medicamentos constantes na lista de medicamentos liberados em caráter excepcional, exige como critérios para inclusão de medicações na lista de medicamentos liberados para importação em caráter excepcional, a comprovação de que o medicamento apresenta registro no país de origem ou no país onde está sendo comercializado, na forma farmacêutica, via de administração, concentração e indicação(ões) terapêutica(s) requerida(s). A decisão do STF não exige isto; já a norma da Anvisa exige que haja comprovação de eficácia e segurança do medicamento por meio de literatura técnico-científica indexada, mas a decisão do STF é mais rigorosa neste aspecto e exige, mais do que literatura técnico-científica, o registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; Será necessária a atualização da RDC nº 8, de 28 de fevereiro de 2014 da Anvisa para esta se adaptar a norma recém definida pelo STF?
  • O que fazer se determinada Indústria farmacêutica se negar a submeter para registro na Anvisa um medicamento seguro, eficaz, aprovado por agências internacionais de renome e inclusive já utilizado no exterior, enfim, medicamento que preencha todos os critérios para inclusão na lista de medicamentos liberados para importação em caráter excepcional, mesmo que médicos, entidades hospitalares e entidades civis representativas ligadas à área de saúde queiram que a indústria farmacêutica submeta o medicamento para registro na Anvisa? Os pacientes brasileiros serão prejudicados? Seria melhor se o STF exigisse, nestes casos, que o próprio Governo brasileiro solicitasse à indústria farmacêutica a submissão do medicamento para registro na Anvisa. Historicamente o Governo tem se omitido nestas ocasiões, que não são tão raras, como se os pacientes que precisam desses medicamentos não fossem cidadãos brasileiros.

O segundo round

Uma das questões mais importantes sobre a judicialização de medicamentos ficou postergada para julgamento pelo STF no dia 13 de junho, aquela que se refere a medicamentos que estão registrados na Anvisa, mas por diversos motivos não foram recomendados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Como a Conitec tem aplicado repetidamente a mesma metodologia de avaliação para doenças frequentes e para doenças raras, isto tem significado a não recomendação de incorporação ao SUS pela Conitec de inúmeros medicamentos órfãos. Em vários outros países são utilizados critérios específicos para doenças raras.

Se o STF decidir que o Estado só deverá custear os medicamentos recomendados pela Conitec, será um golpe duro para milhões de pacientes que têm doenças raras. O STF acaba de demonstrar que entende e valoriza o conceito de “equidade”; pela primeira vez deixou claro o fato de que os medicamentos órfãos devem ser tratados de forma diferente, para que ao final, justiça seja feita. Agora é fundamental que o STF mantenha a mesma postura a favor de equidade no segundo round, e dia 13 de junho determine regras mais flexíveis para o acesso aos medicamentos órfãos pelos pacientes com doenças raras, caso a recomendação da Conitec, nestes casos, não tenha utilizado critério específico para doenças raras. No primeiro round o STF deu esperança aos Raros!

 

Salmo Raskin

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