Fim do espetáculo: hora de colocar a casa em ordem
Diante do encerramento de uma edição atípica, com a pandemia como pano de fundo, o clima deixado pelos Jogos de Tóquio é de ambiguidades e contradições
Enquanto residentes são orientados a não viajar, as fronteiras ficaram abertas para cerca de 80 000 pessoas vindas dos quatro cantos do mundo. Enquanto a população é submetida a um estado de emergência e instruída a ficar em casa, políticos confraternizam em festas privadas. Enquanto os Jogos rolavam a portas fechadas, moradores tiveram que, por mais um ano, abrir mão dos tradicionais “matsuri”, festivais de raízes religiosas que tomam as ruas em animadas celebrações — para mim, o melhor do verão japonês. Diante do encerramento de uma edição atípica, o clima deixado pelos Jogos de Tóquio é de ambiguidades e contradições.
Os paradoxos são reforçados numa caminhada de volta para casa, passando por bairros de Tóquio conhecidos por seu clima boêmio. Enquanto, dentro da Vila, atletas e suas comitivas são submetidos a um rígido monitoramento e a testes PCR diários e, locais se concentram em bares, com portas escancaradas até tarde da noite. Mesmo diante da escassez de leitos, com o aumento acentuado de casos de Covid-19 em Tóquio nesses últimos dias, moradores e trabalhadores da região se sentam no balcão, conversam sem máscara e tomam uma cerveja, alheios aos protocolos sanitários. Em meio a intermitentes estados de emergência e de “semi-emergência” que vêm sendo declarados na metrópole nesses últimos 16 meses, o que vejo é que as pessoas se cansaram.
À revista Time, o virologista Hitoshi Oshitani, que ajudou a traçar o plano inicial do Japão de combate ao vírus, admitiu que seria difícil convencer as pessoas a ficarem em casa em meio à decisão do governo de seguir adiante com os Jogos. Na mesma matéria, Kentaro Iwata, especialista em doenças infecciosas, diz que quanto mais se declaram estados de emergência, menos efeito eles provocam já que a população acaba se acostumando. E, contrariando os apelos do governo, o dono de um bar que segue servindo drinques a seus clientes acha que a frustração faz as pessoas quebrarem as regras.
“Mas os japoneses não são certinhos e obedientes?” — o que poderia ser mais um adendo à lista de incoerências, porém, nada mais é do que fruto de um estereótipo que vem sendo construído e reforçado há bastante tempo. O antropólogo Victor Hugo Kebbe, especialista em Estudos Japoneses, explica que o mito da subserviência japonesa tem origem em duas frentes. Da parte dos países ocidentais, acompanhamos a propagação de um olhar enviesado sobre o Japão, reforçando tudo o que é diferente e “exótico”. E, da parte do próprio governo japonês, discursos nacionalistas do início do século 20 passaram a perpetuar a imagem de um país de população pura e homogênea, dotada de características louváveis e admiráveis.
Dentro desse imaginário reforçado até hoje, observar os bares cheios em Tóquio em meio à pandemia pode causar um choque. Num cenário que envolve poder político, frustrações e questionamentos sobre a condução do combate ao vírus, no entanto, as bebedeiras revelam uma complexidade muito maior do que um mero contrassenso infundado.
Ao final do emocionante espetáculo das arenas, um sentimento agridoce: somos deixados com a missão de colocar a casa em ordem, na esperança de, quem sabe, no próximo verão, termos de volta nossos festivais.
Piti Koshimura mora em Tóquio, é autora do blog e podcast Peach no Japão e curadora da Momonoki, plataforma de cursos sobre o universo japonês. Amante de arquitetura e exploradora de becos escondidos, encontra suas inspirações nos elementos mundanos. (@peachnojapao | @momonoki_jp)