‘Yesterday’ é um dos filmes mais saborosos a estrear nesta década
O longa não é só um tributo ao quarteto de Liverpool, mas ao poder da gentileza, da honestidade e do romantismo
Todas as luzes do mundo se apagam ao mesmo tempo e, nos doze segundos de blecaute, Jack (Himesh Patel) é atropelado por um ônibus — incidente do qual se safa só com algumas escoriações e uns dentes a menos, mas também com uma grande perplexidade: como pode ser que, de um instante para outro, ninguém mais se lembre dos Beatles? Jack toca Yesterday ao violão enquanto bebe uma cerveja com amigos, e eles se espantam: quando foi que ele compôs uma música tão linda? “Paul McCartney é quem a escreveu”, ele responde, aturdido com o absurdo da pergunta. “Paul quem?”, replicam eles. Jack procura no Google, mas a única referência que encontra é a “beetles”, ou besouros. Uma singularidade qualquer no espaço-tempo apagou da história a existência do quarteto de Liverpool e, ao que parece, Jack é o único que ainda tem memória dele. Aspirante a cantor e compositor cuja única plateia regular é a encantadora Ellie (Lily James), ele há anos convive com o fracasso, mas agora tem a chance espetacular de sucesso — ou algo como 130 chances, se conseguir se lembrar das letras e melodias de todas as faixas gravadas pelos Beatles (a intrincada Eleanor Rigby é um desafio). Em um mês, passa da completa obscuridade à popularidade planetária. Jack, porém, é um doce de pessoa, e não demora para que a consciência comece a atormentá-lo pelo roubo — ainda que não existam roubados para queixar-se.
Yesterday (Inglaterra/Rússia/China, 2019), já em cartaz no país, é um dos filmes mais graciosos e deliciosos desta década: um tributo aos Beatles, claro, mas também à vitalidade de todo o pop inglês feito desde então e ao seu poder de agregação cultural. Acima de tudo, é um voto de confiança em gestos simples mas fundamentais como ter caráter, ser gentil, cultivar as amizades e apaixonar-se — todas coisas das quais o roteirista Richard Curtis, de Quatro Casamentos e Um Funeral, Um Lugar Chamado Notting Hill, Simplesmente Amor e Questão de Tempo, é fã incondicional (assim como dos Beatles, evidentemente).
Mas, se a assinatura de Curtis é inconfundível, sua parceria com Danny Boyle na empreitada é motivo de alguma surpresa: não só as trilhas dos filmes de Boyle o identificam com um pop bem posterior aos Beatles, como o diretor de Trainspotting, Quem Quer Ser um Milionário? (pelo qual levou o Oscar) e Steve Jobs é conhecido por uma irreverência e exuberância que estão fora do espectro de Curtis. “Trabalhamos juntos na cerimônia de abertura da Olimpíada de Londres e nos demos tão bem que pedi a Richard que me chamasse para uma colaboração”, disse Boyle a VEJA (leia trechos da entrevista à esq.). “A graça está nisso, em um obrigar o outro a sair do seu habitual”, completa.
Uma das contribuições decisivas de Boyle é ter escolhido gravar ao vivo as várias performances musicais de Himesh Patel, desde as cenas em que ele toca na rua para ganhar uns trocados até um show apoteótico no estádio londrino de Wembley (o público, real, estava lá para ver Ed Sheeran, que interpreta a si mesmo). Ao pedir ao espectador que imagine uma hipótese tristíssima — um mundo sem os Beatles —, Yesterday simultaneamente o faz redescobrir, canção por canção, o repertório magnífico deixado por Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr. Um achado como ator e como cantor, Patel se esquiva de duas pragas — a regravação e o efeito karaokê — para homenagear as versões originais enquanto as torna suas no sentimento. Este vai se aprofundando na mesma medida em que também a obra dos Beatles ia ganhando em riqueza melódica e complexidade, e no mesmo ritmo em que Jack, o Beatle acidental, vai se dando conta de que sua inspiração, sua própria Eleanor Rigby — a adorável Ellie —, esteve sempre diante dele.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650