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Na Netflix, ‘O Gambito da Rainha’ fala de prodígio feminino do xadrez

Uma órfã do interior americano dos anos 50 vira sensação do xadrez. Quanto maior o prêmio, porém, maior a aposta que ele exige

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 14h45 - Publicado em 23 out 2020, 06h00

É verdadeiramente uma guerra: em posições opostas de um tabuleiro de 64 casas, dois exércitos se enfrentam em uma batalha feroz de raciocínios e estratégias, na qual cada general tenta ao mesmo tempo antecipar os movimentos do adversário e surpreendê-lo com suas próprias decisões, num cálculo de probabilidades que chega à casa dos bilhões a cada lance. Quando travada entre as grandes mentes do jogo, a disputa não deixa espaço para a sorte — só a resistência física e psicológica, a agudeza para detectar fraquezas e a superioridade intelectual podem levar à vitória. E eis aí uma das belezas do enxadrismo, da qual O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit, Estados Unidos, 2020) muito se aproveita: as derrotas vêm acompanhadas não só dos sentimentos naturalmente provocados por elas, mas também da admiração, seja ela relutante ou generosa, pelo antagonista.

Na primorosa minissérie em sete episódios disponível desde esta sexta-feira, 23, na Netflix, a protagonista Elizabeth Harmon (Isla Johnston na infância e Anya Taylor-Joy da adolescência em diante) bebe dessa admiração sem nunca matar a sede. Criada sem pai, por uma mãe de tendências suicidas que afinal se concretizam, ela é despejada em um orfanato no Kentucky no fim da década de 50, e só duas coisas aliviam o ódio que tem do lugar. Uma é Jolene, a garota inteligente e irreverente que nunca vai ser adotada porque é negra. A segunda coisa, Elizabeth descobre no porão onde vai bater o pó dos apagadores: o jogo fascinante que o zelador, o sr. Shaibel (o grande Bill Camp), joga contra si mesmo, e que a menina absorve como que por osmose. Elizabeth é um prodígio, destinada a chegar onde, fora da ficção, a nenhuma mulher foi permitido chegar durante a febre do xadrez do período da Guerra Fria.

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Mas, além de ser uma grande mestre em potencial, ela é também, e acima de tudo, Elizabeth: determinada porém com tendência à autossabotagem, senhora de si mas dependente de tranquilizantes e de álcool (e das roupas caras com que se vinga dos vestidos feios de órfã), especialista em manter os outros a distância e então sucumbir por completo a uma afeição — como o amor que vem sem que ela perceba por Alma (Marielle Heller, a diretora de Poderia me Perdoar?, em uma atuação de modulações virtuosísticas), a mulher infeliz que a adota.

Na sua atenção para o detalhe e na sua capacidade de traduzir o mundo por meio dele, o criador e diretor Scott Frank só tem rival no Matthew Weiner de Mad Men. Se sua minissérie anterior, a magnífica Godless, podia ser vista não só como western mas como um mito de criação feminino, O Gambito da Rainha é ao mesmo tempo uma clássica saga de genialidade e uma dramatização da maneira como um indivíduo se torna o que é, escolha por escolha. Quanto maior o prêmio, maior a aposta a fazer, claro — e daí vem o nome da série, tirado de uma sequência de abertura na qual o jogador com as peças brancas sacrifica um peão em troca de maior controle. Seja qual for o saldo último do lance, ele é por si só arrebatador — como o é ver a história de Elizabeth se desenhando no tabuleiro de Frank.

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Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710

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