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Primitivismo reciclado no moralismo oco

É abominável o pensamento do ministro Roberto Barroso segundo o qual um juiz deve “ouvir o sentimento social”

Por Valentina de Botas
Atualizado em 30 jul 2020, 20h29 - Publicado em 18 abr 2018, 08h25

Valentina de Botas

Compreendo que Lula não quis ser preso, também não quero, por isso, ao contrário dele, não cometo crimes. Não sou uma especialista especializada em coisa alguma, mas nenhum cidadão brasileiro precisa ser profundo conhecedor do Código Penal para se manter do lado da lei. Sabemos o que é crime e intuímos com alto índice de acerto o que não é. O historiador Luiz Felipe D’Ávila, no seu livro mais recente, Dez mandamentos ─ do país que somos para o Brasil que queremos ser (Topbooks, 2017, 199 p.), dá uma deliciosa aula magna de anatomia do nosso falido sistema político. Em linguagem clara, o intelectual brilhante demonstra como a nossa legislação loucamente detalhista para resultar em inacreditáveis obscuridades podem encrencar um gestor público honesto tentando ser eficiente. Mas eu falava da catástrofe exuberante da nossa política: a roubalheira. Aí não tem mistério: ou se rouba ou não se rouba nem deixa roubar.

Embora sem as certezas dos especialistas, posso parecer contundente e cheia delas. Claro que não escreveria um texto sem me informar em fontes puras. Mas é pose, viu? Tudo é conhecimento alheio que uso para fundamentar minha opinião e não dar vexame perante a audiência qualificada desta coluna. Minhas próprias certezas se resumem a três ou quatro que guardo na lata de biscoitos atrás da sanduicheira na última prateleira do armário da cozinha. Cada vez que as contemplo para ver se me vejo, eu as encontro farpadas por dúvidas e cercadas por espinhos que espetam minha consciência que teima em procurar o conforto da clausura solitária do próprio existir. Me arranho toda porque é preciso sair da ilha para vê-la. Então, quando posto aqui minhas convicçõezinhas não é para convencer ninguém, senão a mim mesma, ou, ao menos, para que não me esqueça delas, levando-as para o essencial banho de sol e arejá-las sob o olhar do outro. Continuo sem saber um monte de coisas, a maior parte delas, mas sei que morro de amores pela nossa Constituição, a coitadinha mais de 100 vezes emendada em 30 anos, enquanto a enxutona americana tem 20 e poucas emendas em 230 anos. São amores risíveis porque traio a CF com esse crush incurável que tenho pela ideia de que um condenado seja preso antes do trânsito em julgado. Aliás, em tantos casos, até mesmo já com a condenação em primeira instância.

Como é que ficamos então? Não sei. É abominável o pensamento do ministro Roberto Barroso segundo o qual um juiz deve “ouvir o sentimento social”. Isso me lembra só cenários sinistros: uma versão tropicaloide dos sovietes, um sistema do tribunal de choldra, a institucionalização de linchamentos e julgamentos sumários. Claro que Barroso não pregaria nada disso abertamente, mas nem precisa, o vocacional depredador do estado de direito democrático vê a árvore na semente e manipula a justa indignação do Brasil diante da impunidade. Porém, é insuportável, do lado dos chamados garantistas, Gilmar Mendes evocar sei-lá-eu-o-quê para rever sua posição quanto à prisão após segunda instância. Para acalmar esse incêndio, o Congresso providencia gasolina na forma de uma absurda proposta de emenda à CF sobre o tema ─ que é cláusula pétrea! Não se muda nem com PEC, somente com outra constituição. A excrescência não prosperará por causa da intervenção federal no Rio cuja vigência impede a tramitação de emendas constitucionais. A marcha da insensatez pode culminar ─ e, no Brasil, o cume não é o limite ─ no assédio à liberdade de imprensa, contemplada no mesmo artigo 5º que reúne as cláusulas pétreas. Autoritários ressentidos com uma imprensa livre para errar e acertar adorarão o eventual precedente. Que tal?

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Se dermos chance à sobriedade num debate que tem produzido mais calor do que luz, talvez a prisão preventiva, prevista nos artigos 312 e 319 do Código de Processo Penal, seja uma alternativa. Ela está disponível para qualquer juiz que a considerar cabível. Assim, me parece razoável proteger nossa precocemente envelhecida CF, mas ainda em vigor, e, ao mesmo tempo, mandar logo para a cadeia quem fez por merecer. Esta sobriedade, esta pausa para respirar, refletir e suspender o ódio ao debate informado ganharam um aliado no Painel WW, novo programa de William Waack, em que a indignação de um Brasil exausto não é tutelada. Falo por mim: cidadãos que buscam se informar, não precisam que lhes ensinem a quem odiar e amar. Sou capaz de me indignar com o que vejo, para isso não preciso de jornalistas/analistas enfurecidos cuspindo fogo, fígado e alfafa omitindo se alguma lei está sendo violada por determinada decisão do STF ou de um juiz. A fácil gritaria do moralismo oco satisfaz a indignação ignorante, obrigada, mas eu passo.

O Painel WW lembrou algumas verdades escondidas pela obsessão nesse moralismo que promete nos transformar num país limpinho e ainda mais medíocre em que honestidade, sempre fundamental, é ungida qualidade suficiente: a Lava Jato não inventou nosso paralisante déficit fiscal, claro, mas também não vai resolvê-lo (aliás, em proveito próprio, as instituições envolvidas acham que a hecatombe fiscal é produto da corrupção, quando analistas sérios provam que ela é produzida pelo Estado inchado); se as reformas de que precisamos para ontem que modernizarão o Estado não habitarem a agenda do novo presidente, não importa quantos corruptos a LJ prenda, nosso passado incessante estará garantido; o governo-mais-impopular-da-história e esse-Congresso-que-está-aí fizeram mudanças importantes cujo valor se perde nessa espécie de transe que nos tange para o perigoso “zerar tudo”. É importante reconhecer essas mudanças não porque isso melhorará a popularidade de um governo que acaba logo mais, mas porque o país continua e elas apontam um caminho racional. Depois de tanta coisa, não merecemos que os avanços da agenda política sejam diluídos pela estridência de uma agenda policial militante; minha ressalva é à estridência e à militância.

À parte as diferenças entre as operações Mãos Limpas e a Lava Jato, a Itália zerou tudo elegendo o “outsider” Berlusconi; a Argentina, no começo dos anos 2000, sob o mote “Que se vayan todos!”, trouxe Cristina Kirchner; nós, em 1989, no país ansioso por zerar o passado e com 22 (!) candidatos à presidência no 1º turno, colocamos no 2º os dois piores, Collor e Lula, para separarmos o joio do joio. Ambos cavalgavam o moralismo oco que, 30 anos depois, ainda promete resolver dramas que nem sequer tem competência para reconhecer. Por exemplo, para Marina Silva e Joaquim Barbosa, duas figuras tão autoritárias quanto aparentemente honestas que aparecem bem na última pesquisa eleitoral, a previdência não é deficitária. Entre os candidatos identificados com o campo liberal do centro para a direita, excetuados mitos farsantes de extrema direita, os números alertam para o desastre da fragmentação em candidaturas que pode devolver o poder às esquerdas avessas ao século 21. Mas o que é que eu sei? Só que a eleição de extremistas do moralismo sem mais nada a oferecer será o triunfo da privilegiatura; seremos uma nação de imbatível mediocridade limpinha (nunca tão limpa quanto parece), em que o inchaço pornográfico da folha de pagamento de um Estado ineficiente e que continuará suscetível à corrupção, enquanto o país persevera no atraso, estará garantido para perpetuar privilégios dos heróis do nosso primitivismo reciclado.

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