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Por Coluna
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Antenas

Caminhar pela Paulista e ter o prazer de entrar num restaurante após longa ausência. Eu não sei como essas coisas acontecem. Apenas acontecem com o tempo

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h14 - Publicado em 20 out 2018, 15h48

Heraldo Palmeira

É bom estar de novo em Sampa, a minha cidade do coração dentre tantas que moram nele. Respirar com força um ar que dizem irrespirável. Bobagem, o pulmão aceita de bom grado. Terá trabalho, é certo. E daí? A fuligem dos carros é descomunal. E as pessoas, nem aí, fazem suas caminhadas, correm no meio da confusão como se estivessem nas trilhas de um parque com ar de montanha.

O ambiente acolhedor do escritório, caminhar pela Paulista, aproveitar a gastronomia pantagruélica da região. O prazer de entrar num restaurante depois de longa ausência e os garçons virem fazer festa, todos nós nos tratando pelos nomes entre afagos, gracejos e abraços. Eu não sei como essas coisas acontecem. Apenas acontecem com o tempo.

 

Eu não sei, eu não sei

Acompanhe de perto

E você verá

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Eu não sei, eu não sei

 

Alguns dias depois, feriadão. Tarde da noite. Beatles na vitrola, os quatro e suas mulheres em cenas comuns aparecendo na tela, apenas sendo o retrato encantador da maior revolução de costumes de que se tem notícia. Interessante, essa não foi uma notícia que envelheceu como todas as outras, parece que há um poção mágica ali.

Um carro passa rápido na rua deserta lá em baixo, desviando minha visão periférica para a cidade. Ali adiante, o café famoso fechado, o cruzamento com a Paulista quase em ritual de meditação. Cena rara!

Nenhuma alma viva na rua, apenas os mendigos sob seus molambos, jornais e papelões para se abrigar da noite levemente resfriada de primavera. O caminhão do lixo passa cumprindo seu ritual de fazer barulho e levar embora o que sobrou de nós. Uma motocicleta com escapamento aberto faz um vocal em terça voz na diatônica do nada a fazer a não ser ouvir sem querer.

 

Eu olho vocês todos

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Eu olho para o chão

E vejo que precisa ser limpo

Eu olho o mundo

E eu noto que ele está girando

Com todo erro

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Nós certamente precisamos aprender

Como eu estou sentando

Fazendo nada além de envelhecer

Vejo o amor que aí dorme

Eu olho vocês todos

 

Não sei se são homens ou mulheres, vejo apenas pacotes humanos para serem desfeitos quando amanhecer. E ficar por ali ou seguir para algum lugar exatamente igual, uma calçada sem qualquer perspectiva na infernal superposição de prédios.

Pensei na insegurança que ronda todo tempo aquelas criaturas e a contradição da nossa soberba que nos faz levantar o nariz para ignorar o piso onde elas deitam. E me perguntei como, tão expostos à insegurança, podem ser o retrato da nossa insegurança, a face do nosso temor paranoico de que tudo pode dar errado num piscar de olhos. Até que dê errado e a gente perceba que não é simples paranoia.

 

Quando eu era jovem

Muito mais jovem que hoje

Eu nunca precisei

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Da ajuda de ninguém

Em nenhum sentido

E agora estes dias se foram

Eu não sou uma pessoa

Assim tão segura

 

Um corpo vem cambaleando lentamente. É o velho que passa o dia por ali falando com alguém que só ele vê. Não sei se cambaleia de bebida ou de velhice. Vai se acomodando, embrulhado em seus trapos, mais um pacote humano pronto para se desmanchar na hora sagrada em que o sol chegar.

 

Lá vem o velho mais chato

Ele vem gingando lentamente

Ele tem olhos mágicos

 

Ele tem alguma mágica escondida, as crianças não o temem e se divertem. Gosta da banca de jornal, fica nos arredores mirando jornais pendurados e revistas expostas. Não mexe em nada e só se aproxima quando não há ninguém por perto. Não incomoda. Quando desanda a falar, talvez discuta as notícias ou fofocas da tevê ele sabe que estão ali com o tal amigo invisível. Ele até gesticula. Talvez haja uma plenária do absurdo, uma galeria armorial, pois se movimenta com meneios elegantes e fala em muitas direções, como fazem os oradores de boa técnica.

O sol, o amanhecer. E os embrulhos começam a se desfazer lentos. Levanto cedo e caminho entre os dois mundos da cidade. Mantenho a fé, é indispensável sobreviver no meio da multidão. Passo entre restos de molambos e cargas ainda sobre a calçada esperando a hora de entrar nos estabelecimentos. O cheiro de café e pão fresquinhos enche as narinas, não dá para contornar o desejo de entrar na padaria. Nem são oito horas e a Paulista fervilha, calçada e asfalto. Coisa de sábado. Porque hoje é sábado. Dia da criação.

 

Hoje é sábado, amanhã é domingo

A vida vem em ondas, como o mar

Não há nada como o tempo para passar

Amanhã não gosta de ver ninguém bem

Hoje é que é o dia do presente

O dia é sábado.

Há um renovar-se de esperanças

Há uma profunda discordância

Há um grande espírito de porco

Há criancinhas que não comem

Há um piquenique de políticos

Há uma tensão inusitada

Há adolescências seminuas

Há um grande aumento no consumo

Há a sensação angustiante

Há a perspectiva do domingo

Porque hoje é sábado.

 

E amanhã é domingo. Dia da traição, que nos engana com o descanso que acaba na segunda-feira, dia da recusação de recomeçar tudo de novo e a gente fazendo nada além de envelhecer.

A multidão se desloca potente e solitária, como um mecanismo amorfo e mutante, em cada esquina se esvaindo e se realimentando de novos elementos que vêm e vão por seus destinos escolhidos ou não. Sendo tragada ou expelida por lojas, portarias, elevadores, carros, ônibus, metrôs. E pelos cigarros comidos pelo fogo sem qualquer paixão.

 

E quando as pessoas

Sozinhas no mundo, concordarem

Haverá uma resposta

Deixe estar

Pois embora possam estar separados

Eles verão que ainda há uma chance

Haverá uma resposta

Deixe estar

Sussurrando palavras sábias

Deixe estar, deixe estar

 

Há um menino triste, com sua caixa de engraxate. Ronda, ronda, ronda como eu fiz de noite com a cidade, sem sair do lugar pelo menos, fui embora antes da cena de sangue num bar. Ronda, ronda e pede que alguém pague um lanche. Ronda sem acreditar muito que possa haver mágica naquele passar de graxa, escova e flanela, e alguns pingos d’água para hidratar o couro. Ingratos, os sapatos vão embora brilhando e nem olham para trás. Acreditam que as moedas que deixaram valem mais.

 

Ei, não fique mal

Pegue uma canção triste

E torne-a melhor

Lembre-se de deixá-la entrar

Em seu coração

Então você pode

Começar a melhorar as coisas

Não tenha medo

E qualquer vez

Que você sentir dor

Vá com calma

Não carregue o mundo

Nos seus ombros

Você bem sabe que é tolice

 

Desço a ladeira suave da minha rua, que nunca foi minha e não é de ninguém. Tanto que está vazia. Tanto que dá um certo frio na espinha. Tanto que olho para trás. Sossego porque vejo os pacotes de molambos imóveis em suas calçadas, que seriam minhas também se eu não tivesse escapado das armadilhas. E assim apresso o passo e atravesso o trecho.

 

E não há nada com o que se preocupar

Viver é fácil com os olhos fechados

Sem entender tudo o que você vê

Está ficando difícil ser alguém

Mas tudo funciona bem

Isso não me importa muito

 

Um homem que não sei quem é e não sabe quem sou abre o portão. E o seguinte, depois que ouve aquele “claque” metálico seco do primeiro fechando. Sim, é preciso a eclusa para rimar com vida reclusa amedrontada atrás de grades, cercas elétricas e alarmes. Um “obrigado” meu, por obrigação, sem resposta, mais dois “boa-noite” indo e voltando encerram a trilogia minimalista do que dizer. Não há mais nada a fazer a não ser dar de ombros e subir.

O elevador lento combina com a noite alta, preguiçosa do domingo. Roda a vitrola incansável. O precioso Paêbirú entra pelos ouvidos e viaja pela partitura das entranhas como um bálsamo interior. Raríssimo em seu dialeto, libelo dialético como nunca se viu. É mesmo “maneira insinuante e capciosa de argumentar, de raciocinar com excesso de sutilezas”, como li nalgum lugar. É obra para se ouvir em silêncio absoluto olhando pela janela segura do milésimo andar, sem anteparo. É um voo no vazio preenchido. Viva Zé Ramalho; viva a memória de Lula Côrtes — partido e inteiro. Viva o sono sucumbindo à segunda-feira novinha em folha.

Trechos de:

Something (George Harrison)

While my guitar gently weeps (George Harrison)

Help (John Lennon-Paul McCartney)

Come together (John Lennon-Paul McCartney)

Dia da criação (Vinícius de Moraes)

Let it be (John Lennon-Paul McCartney)

Hey Jude (John Lennon-Paul McCartney)

Strawberry fields forever (John Lennon-Paul McCartney)

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