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A honra perdida na arca de Noé

Viajam conosco muitos bichos, alguns demasiadamente furiosos e irresponsáveis, querendo fazer afundar a arca de qualquer jeito

Por Deonísio da Silva
4 ago 2019, 14h13

Deonísio da Silva

Também o mundo está mergulhado numa confusão, não apenas o Brasil. Quem sabe um romance e uma canção dos tormentosos anos 70 nos ajudem a entender o que aparece junto, mas não pode ser misturado: a lei e a desordem, o policial e o suspeito, o xerife e o bandido, os que sabem que roubaram e os que sabem que não roubaram, etc.

É do escritor alemão Heinrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura de 1972, o romance A honra perdida de Katharina Blum, lançado em 1974 e levado ao cinema no ano seguinte, com direção de Volker Schlöndorff e Margarethe von Trota, com esplêndida atuação da atriz alemã Angela Winkler (75), então com trinta anos, no papel de Katharina. Também cantora de voz delicada e maviosa,  pode ser ouvida aqui uma de suas canções de maior sucesso: “Ich liebe dich, kann ich nicht sagen” (Eu te amo, mas não posso dizer).

Conta a história de uma bela diarista divorciada que vive de seu trabalho e leva uma vida independente. Apaixonada por um certo Ludwig, a quem conhece numa festa, leva o sujeito para passar a noite com ela. Katharina não sabia que o cara era um perigoso terrorista procurado pelas forças de segurança.

No dia seguinte, a polícia invade o apartamento dela e a leva presa para depor. Segue-se um festival de exageros, tanto por parte dos investigadores quanto da imprensa. Caluniada por um jornal sensacionalista e cansada de pagar pelo que não fez, a mulher, que é inocente, mata a tiros o repórter que transformara sua prisão num escândalo nacional.

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A imprensa, hoje entendida por mídia, por ter ampliado consideravelmente sua atuação ao englobar várias conquistas tecnológicas num veículo apenas, normalmente é mostrada em momentos heroicos, como os que teve na revelação dos documentos da guerra do Vietnã e no escândalo de Watergate. Mas o romance e o filme mostram um caso emblemático de como certo tipo de imprensa e malfeitores podem trabalhar unidos.

O autor baseou-se na luta para desmascarar as calúnias lançadas sobre ele por uma publicação sensacionalista no após-guerra. E, tal como Gustave Flaubert disse “Ema Bovary sou eu” , também Heinrich Böll deu a entender que Katharina Blum poderia ter sido ele, caluniado e perseguido pela imprensa por ter defendido que o judiciário de seu país cumprisse as leis, fossem quais fossem os réus. O contexto do livro e do filme é uma Alemanha aterrorizada pelo grupo guerrilheiro Baader-Meinhof, que atuou por mais de duas décadas, antes e depois destes dois eventos artísticos.

Vamos a outra luz, vinda da mesma época. O cantor e compositor italiano Sergio Endrigo, autor de Canzone per te, com a qual Roberto Carlos tinha vencido o Festival de San Remo em 1968, voltava em 1970 com a Arca di Noè, quase num tom de lamento, dizendo, ou melhor cantando.

E ogni curva un cavallo di latta/ Distrugge il cavaliere/ Terra e mare, polvere bianca/ Una cità si è perduta nel deserto/ La casa è vuota nos aspetta più nessuno/ Che fatica esser uomini”. (A cada curva um cavalo de lata/ Destrói o cavaleiro/ Terra e mar, poeira branca/ Uma cidade perdida no deserto/ A casa está vazia/ E não espera mais ninguém).

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Ele fechava a canção com a mesma melancolia com que a tinha aberto, contemplando “um voo de gaivotas telecomandadas”, “uma praia de conchas mortas” e “na noite uma estrela de aço” que confundia o marinheiro” (Un volo di gabbiani telecomandati/ E una spiaggia di conchiglie morte/ Nella notte una stella d’acciaio/ Confonde il marinaio). As gaivotas eram os assustadores foguetes intercontinentais com ogivas nucleares, já então com seu apocalíptico poder de destruição. A estrela de aço era o satélite, que não sendo estrela, desorientava os navegantes.

Mas eis que entre as duas desgraças, a que abria e a que fechava a obra, o autor falava de dois momentos encantadores: Linhas brancas num céu azul/ Para encantar e fazer sonhar as crianças” e “A lua cheia de bandeiras sem vento”, “Que cansaço ser homem”.  (Strisce bianche nel cielo azzurro/ Per incantare e far sognare i bambini/ La luna è piena di bandiere senza vento/ Che fatica essere uomini).

E a esperança era anunciada, não no desfecho da narrativa, como é usual nos finais felizes, mas no entrecho: Partirá/ A nave partirá/ Onde chegará Isso não se sabe/ Será como a arca de Noé/ O cão, o gato, eu e você”. (Partirà/ La nave partirà/ Dove arriverà/ Questo non si sa/ Sarà come l’arca di Noè/ Il cane, il gatto, io e te).

No Brasil e no mundo, nós todos viajamos numa Arca de Noé, onde os acontecimentos são noticiados de um modo muito confuso. Viajam conosco muitos bichos, alguns demasiadamente furiosos e irresponsáveis, querendo fazer afundar a arca de qualquer jeito. Entre nós, viajam várias Katharinas com sua honra perdida.

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*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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