Com a Aliança, o bolsonarismo se torna um movimento
É exagero relacionar a condução do partido ao centralismo democrático leninista, mas não há dúvidas de que a nova sigla tem dono
Aliança pelo Brasil, nome escolhido para o novo partido de Jair Bolsonaro, é a representação real e mais pura do movimento bolsonarista. Poucos brasileiros na história batizaram movimentos como o getulismo e o lulismo, mas é inegável que Bolsonaro faz parte desse clube seleto.
Como dito em seu próprio manifesto, a Aliança nasce com comando claro e tem linha sucessória: “É o sonho e a inspiração de pessoas leais ao Presidente Jair Bolsonaro”. A lealdade ao presidente faria da Aliança “muito mais que um partido”. Numa entrevista recente à youtuber Antônia Fontenelle, ao ser perguntando como seriam escolhidos os candidatos a prefeito ligados a ele em 2020, Bolsonaro respondeu sem eufemismos: “Democraticamente vai ser eu”.
É exagero relacionar a condução do novo partido ao centralismo democrático leninista, mas não há dúvidas de que a Aliança tem dono. Num tweet recente, o presidente disse “não podemos cometer erros. Sem um norte e um comando, mesmo a melhor tropa se torna num bando que atira para todos os lados, inclusive nos amigos”, gerando reações negativas imediatas das duas deputadas mais votadas do PSL, Joice Hasselmann e Janaína Paschoal, que não seguirão Bolsonaro na Aliança.
Partidos políticos são parte essencial do regime republicano tradicional e organizados com regras burocráticas e hierarquias que parecem anacrônicas para uma opinião pública impaciente e dada a mudanças na velocidade das redes sociais. Já movimentos costumam driblar a ordem estabelecida e invadir a cena com líderes que desafiam o status quo como Emmanuel Macron, o mais jovem presidente da história da França, que se desvencilhou do Partido Socialista e do impopular François Hollande poucos meses antes da eleição de 2017 com seu “Em Marcha!”
Jair Bolsonaro já foi filiado a quase uma dezena de siglas partidárias, mas nunca se identificou com qualquer uma delas. O sistema partidário brasileiro sempre pareceu uma formalidade incômoda, já que mesmo como deputado federal representava um segmento específico do eleitorado que pouco se importava com o partido que ele estava, dando a ele sucessivos mandatos.
Amantes da liberdade e do bem, somos a maioria. Não podemos cometer erros. Sem um norte e um comando, mesmo a melhor tropa, se torna num bando que atira para todos os lados, inclusive nos amigos. Não dê munição ao canalha, que momentaneamente está livre, mas carregado de culpa. pic.twitter.com/NSMjtytuDO
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) November 9, 2019
Bolsonaro representava causas ligadas a um sindicalismo militar desde que ganhou as páginas da Veja em 1986, na notória matéria que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Foi a partir de 2016 que ganhou tração real nas redes sociais como presidenciável que representava, aos olhos do eleitor, a resposta mais contundente ao lulismo. A convergência pragmática de todos os adversários do lulismo em torno da candidatura Bolsonaro ocorreu às vésperas da eleição e, com o nascimento da Aliança, ganha um novo capítulo.
O manifesto da Aliança faz concessões ao liberalismo, mesmo não sendo liberal num sentido clássico: “estamos formando uma nova Aliança pelo Brasil. A Aliança por um país da liberdade, da prosperidade, da educação, da ética, da meritocracia, da transparência, do respeito às leis, da segurança e da igualdade para homens e mulheres no trabalho, na política e em todos os campos do desenvolvimento social.”
O governo atual tem o Ministério da Fazenda mais liberal da história do país e está conseguindo avanços admiráveis na economia, num país acorrentado há décadas por um intervencionismo retrógrado, corrupto e suicida, mas o liberalismo é visto como ferramenta e não como um fim em si. Liberais “leais” são aceitos no movimento, mas a essência declarada da Aliança em seu manifesto é “o resgate de um país massacrado pela corrupção e pela degradação moral contra as boas práticas e os bons costumes” para aqueles “que clamam por uma nova ordem de referências éticas e morais”.
Conservadores e liberais são naturalmente céticos ao poder e aos políticos, buscando se afastar de lideranças carismáticas, personalistas e centralizadoras para criar, nas palavras de John Adams (1735-1826), um sistema de leis e não de homens. Isso quer dizer que o governo não é “conservador” ou “liberal”? Steve Bannon, ex-estrategista de Trump e o líder mundialmente reconhecido da corrente política em que o bolsonarismo hoje se identifica, intitula seu movimento de “nacional-populista”, com críticas a liberais “de Chicago” como Paulo Guedes. A tensão entre “nacional-populistas” e liberais “de Chicago” ainda não produziu qualquer efeito prático, o que não quer dizer que não exista.
O estado, para conservadores e liberais clássicos, é um mal necessário e não um norte moral e ético da nação. A direita liberal entende o governo como uma instituição humana e imperfeita, que deve ter poderes delimitados e minimamente necessários para a manutenção da ordem pública e do estado democrático de direito, e não um ente de razão superior. Donald Trump, quando confrontado com escândalos da sua conduta pessoal, como o alegado envolvimento com atrizes pornôs, costuma responder que nunca disse ser perfeito. Trump claramente não almeja ser o líder moral da nação, apenas o representante do eleitor no campo estreito e muito bem delimitado da política.
O bolsonarismo é hoje a maior força político-eleitoral do país e é natural que almeje aglutinar suas forças numa única bandeira e com controle centralizado da “tropa”. A soltura de Lula da prisão pareceu encomendada para reenergizar uma oposição que respirava por aparelhos, mas seu futuro ainda é incerto.
Lula continua condenado e ainda responde por vários crimes, o que não é exatamente um ativo eleitoral contra um presidente que lidera, ainda segundo o manifesto, “uma nova e verdadeira atitude de aliados que almejam livrar o país dos larápios, dos “espertos”, dos demagogos e dos traidores que enganam os pobres e os ignorantes que eles mesmo mantêm, para se fartar.”
A Aliança não é uma dissidência do PSL, que mal existia antes de Bolsonaro, é um movimento populista no sentido original do termo, uma corrente política alegadamente “anti-establisment” e contra as “elites” ou “corporações”, como citado num texto polêmico compartilhado pelo presidente há alguns meses.
Bolsonaro sempre foi tratado com desdém pelo sistema que hoje desafia e contra o qual acumula vitórias sucessivas. Ele fala diretamente, num uso bastante profissional e eficiente das redes sociais, com a população, numa língua que ela entende e com quem compartilha agendas comuns em diversos temas sociais, políticos e econômicos.
A Aliança com parte da população, na prática, já existe. Sua criação é apenas a formalização de uma força política que dá sinais que veio para ficar.