Um teste do tribunal da internet
Confira o resultado. Isso se não for daqueles que se contentam em ler apenas as manchetes que aparecem em sua timeline do Facebook
Não é a primeira vez que testo o índice de (ou falta de) leitura por parte dos comentaristas de redes sociais. Em fevereiro deste ano, publiquei a chamada “Estudo indica que brasileiros leem cada vez menos. Será?” no Facebook de VEJA. Contudo, tratava-se de uma pegadinha. Pois bastava clicar no link para ser direcionado a uma página na qual se explicava o experimento, que justamente apresentava o intuito de flagrar aqueles que compartilham notícias (ou, ainda, fake news) por Facebook e afins sem nem ler / ver o conteúdo. O resultado foi de entristecer – tiveram até associações de (acredite!) incentivo à leitura que caíram na armadilha. No fim, o teste ainda rendeu uma palestra em um TEDx (em breve, compartilharei o vídeo respectivo). Agora, realizei outro teste com os leitores, ou não-leitores.
Notei como o último post publicado neste espaço (“O caso William Waack e o tribunal da internet”) estava se espalhando pelas redes de forma deturpada. Por isso, resolvi analisar se tal descontextualização se dava por incapacidade de interpretação de texto, ignorância acerca das tantas referências incluídas (a exemplo de citações à série de TV Black Mirror e a escritores como Hemingway e Nelson Rodrigues) ou se simplesmente os navegantes do Facebook repetiram o ato de reagir tão-somente a uma chamada que viram em suas timelines, sem nem clicar na mesma, conferir o que fora escrito etc. É de entristecer notar que se tratou do último caso. Mais uma vez.
Como sei? Após observar a série de compartilhamentos deturpados de meu post, resolvi planejar o novo teste. Para efeitos práticos, emprestarei mais uma vez o adjetivo usado por Umberto Eco para definir os comentaristas seriais das redes sociais, que nada leem, mas tudo sabem: “imbecis”. Pois coloquei os imbecis à prova.
Para realizar o experimento, decidi por ampliar o público, com o objetivo de flagrar mais dos imbecis. Por isso, impulsionei – termo usado pelo Facebook para quando se paga uns contos (no meu caso, em torno de 20 reais) para propagandear um post pela rede – o link, numa tática adotada por mim apenas outras duas vezes (numa para promover meu livro sobre a história do Instagram, O Clique de 1 Bilhão de dólares; noutra simplesmente para ver como funcionava o recurso). Como resultado, multipliquei por cinco o alcance do teste na rede de Mark Zuckerberg, atingindo alguns milhares de indivíduos.
Primeira descoberta: de cada dez pessoas que pararam para ver a chamada, uma se dava ao trabalho de lê-la. Então, monitorei comentários sobre o post; algo que raramente faço. Como percebi que ou muitos dos comentaristas foram maliciosos e preconceituosos ao espalhar a notícia, ou faltou a eles um mínimo de compreensão de texto (quais forem estes) ou (o mais provável) seguiram a forma que destaquei no mesmo post publicado neste espaço, de “veja, julgue o mais rápido (quanto menos tempo para refletir, melhor) e compartilhe sua condenação com ares de expert”? Como descobri? Ficou evidente, em poucas constatações, que a maioria realmente viu, não leu e saiu por aí falando como bêbados ignorantes num bar.
1. Tão-somente por ter colocado o nome William Waack em pauta, alguns me “acusaram” de defender a fala racista do jornalista. E não adiantou destacar, logo no início do post: “por ter viralizado um vídeo no qual fez (o William Waack) comentários racistas”. Onde, nesta frase, se protege o ato (repito: racista) do apresentador?
2. Muitos dos imbecis garantiram que o post publicado pretendia evitar a condenação de Waack. Pausa. O que escrevi sobre: “Será que a maioria se esqueceu que quem tem o dever de realizar esse trabalho é a Justiça?”. Ou seja, passei à magistratura, não aos imbecis, a incumbência de julgá-lo. Por um crime que pode até dar 4 anos de prisão. E os imbecis, por razões, digamos, estranhas, se incomodaram.
(Nesse segundo ponto, é interessante constatar que assim como os imbecis da internet rapidamente condenam virtualmente, eles também esquecem rápido dos casos “da vez” e parecem não tirar realmente a bunda do sofá para promover alguma punição de fato. Na semana passada, falava-se muito do assunto. Nesta, parece que os imbecis esqueceram, ou se contentaram com o julgamento online, e não vi por aí muita gente cobrando para que a Justiça de fato aja no caso)
3. Nem entrei na questão do afastamento do jornalista da Globo. Afinal, meu texto focava em analisar o fenômeno do tribunal da internet. Mesmo assim, surgiram imbecis que garantiam que eu tratava disso.
4. Por fim, também em nenhum momento reprimi a indignação pelo comentário racista, apesar também do que pronunciaram os imbecis. O que fiz? Repudiei o apedrejamento. Jogar pedras em praça pública é coisa de autocracias e miniditadores. É coisa de gente que pede por fuzilamentos. Como bem analisou Demétrio Magnoli em sua coluna da Folha de S. Paulo, coisa da URSS stalista, da Alemanha nazista, da China maoísta, do Camboja de Pol Pot e da Cuba castrista. Ou então, acrescento, dos fariseus citados na Bíblia como adeptos do apedrejamento de adúlteras.
Não culpe as redes sociais, ou seus mentores (a exemplo do citado Zuckerberg), pela disseminação da imbecilidade online. Quando foram criados, esses sites e apps tinham o intuito de conectar indivíduos, independentemente de fronteiras culturais, linguísticas e/ou geográficas. No caso do Facebook, inicialmente a ideia era ligar universitários de todo o planeta. Do Twitter, bem destacou a mim, certa vez, o ex-CEO Dick Costolo, de que os tweets de 140 caracteres no começo foram pensados apenas como forma das pessoas compartilharem besteiras cotidianas (como o que se comeu no almoço). Então, quem culpamos? Os imbecis, é claro.
Em carta publicada neste ano, o cientista da computação Tim Berners-Lee, o genial inventor do “www”, a internet tal qual conhecemos, exibiu preocupação com os ares que tomou sua criação. Escreveu ele: “Posso até ter inventado a internet, mas são todos vocês que me ajudaram a criar como ela é hoje. Todos os blogs, posts, tweets, fotos, vídeos, aplicativos e sites representam a contribuição de milhões de indivíduos dessa comunidade online”. Nisso, Berners-Lee um tanto que indicou que a culpa pela rede ter se tornado um ambiente de julgamentos sumários e de proliferação de ódio não pode ser só dele (e, corrijo, não é dele). A responsabilidade tem de ser dividida, e sentida, por cada um que acessa o Facebook, o YouTube, o Twitter, o Instagram.
Adiciono: a real é que esses imbecis sempre estiveram entre nós. Contudo, separados pelos famosos 6 graus de separação e por distâncias espaciais, e por vezes temporais, difíceis de serem transpostas pelos preguiçosos. Hoje, os mesmos imbecis que teciam comentários ignorantes (pela definição da palavra: “que não está a par de alguma coisa”) quando bêbados em praça pública, têm em mãos uma ferramenta de alcance global, de ação rápida, na qual já se estimou que os graus de separação entre seus membros é de somente 3 passos (metade de como se estabelecia na era pré-mídias sociais).
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Vale também ressaltar meu asco por, em alguns comentários, terem dito que eu nem podia ter tratado do assunto, de forma alguma, por não ser negro (sobre esse tópico vale também ler esse ótimo texto do colega Eduardo Wolf, que definiu atitude similar como “enquadramento policialesco”). Ou, como todos definiram (e esses todos que vi em revolta por isso, vide só, eram brancos), por eu ser anglo-saxão. O que, aliás, não sou. Minha origem é majoritariamente latina, com um pouco de mistura com indígenas brasileiros.
Esse tipo de separação racial é o que dá ignição aos conflitos étnicos mais graves. Caro leitor, todos nós, humanos, temos de batalhar para que cada um possa ser quem nasceu sendo (seja negro, asiático e/ou homossexual) ou o que escolheu ser. Esse é o princípio de iniciativas como a HeForShe (ElePorElas), da ONU. Antes de tudo por serem ilusórias as separações raciais (e, em certa medida, as de gênero). Elas simplesmente são fruto de preconceitos, não existem em termos científicos, como mostrou uma descoberta recente, tema de matéria de VEJA. Uma vez comentou o astrofísico Neil deGrasse Tyson, em conversa que tive com ele: “Quando descobrirmos ETs inteligentes, um dos efeitos é que finalmente passaremos a nos identificar como uma raça única, a do homo sapiens, tentando sobreviver, em conjunto, num universo infinito.”
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Por fim, volto a exibir minha preocupação com a falta de senso das pessoas em saber separar o que um ser humano produz, cria, de sua índole, de suas falhas morais. No último texto deste blog, simplifiquei assim: “Sempre que toco no tema do tribunal do Facebook, questiono-me, ainda: “será que gênios como Ernest Hemingway (1899-1961), Nelson Rodrigues (1912-1980) e Hunter S. Thompson (1937-2005) sobreviveriam ao julgamento da manada facebookiana?”. Aposto que não. Provavelmente, todos seriam jogados numa piscina venenosa, repleta de tweets os tachando como “machistas”, “radicais”, “misóginos”.”
Em coluna recente, Hélio Schwartsman incluiu outros nomes à lista, como o de Albert Einstein. E, em seu texto de hoje, João Pereira Coutinho adicionou mais alguns, a exemplo do diretor Roman Polanski, sobre quem falou: “é perfeitamente possível imaginar os filmes de Polanski na tela — e o diretor na cadeia”. Sim, há uma punição prevista a criminosos: a prisão. Contudo, o mesmo não pode ser aplicado às suas obras: queimá-las, restringi-las, julgá-las, aprisioná-las, por efeito contínuo dos desvios morais de seus autores, é, volto a dizer, coisa de miniditadores do Facebook.
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