Neste momento, há mais de 1 000 projetos de desenvolvimento de hidrogênio verde no mundo. A estimativa é do Hydrogen Council, uma iniciativa lançada por um grupo de treze empresas durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2017, com o objetivo de impulsionar essa energia limpa. Hoje o movimento global já reúne cerca de 150 companhias multinacionais. Os projetos em curso estão recebendo investimentos da ordem de 320 bilhões de dólares — que deverão chegar a 500 bilhões até o fim da década. Em 2030, a previsão é alcançar uma produção de 38 milhões de toneladas de hidrogênio verde no mundo, sendo 60% na Europa e na América do Norte.
+ Confira o especial de VEJA sobre energias sustentáveis
Os dados confirmam que o hidrogênio verde, conhecido no mercado pela sigla H2V, se tornou um caminho sem volta. A tecnologia, em si, não é uma novidade: as aplicações industriais do hidrogênio são conhecidas há décadas. O que mudou é o foco na fonte de energia utilizada no processo de produção: agora, para obter o hidrogênio verde, usa-se energia renovável.
A indústria classifica o hidrogênio conforme a fonte energética empregada para realizar a eletrólise, processo químico pelo qual as moléculas de água são separadas em hidrogênio e oxigênio. O hidrogênio marrom, por exemplo, é obtido por meio da gaseificação do carvão mineral. Já o hidrogênio cinza é gerado com base no vapor de gás natural. A busca se volta agora para o hidrogênio verde, produzido com fontes de energia limpa, especialmente a eólica e a solar.
A tecnologia existe, mas o desafio é ganhar volume, de modo que se torne economicamente viável. “A principal dificuldade para o setor do hidrogênio é a produção em escala em todos os elos da cadeia. Isso inclui as fabricantes de componentes, máquinas e equipamentos para a produção de hidrogênio e de sistemas e veículos movidos a célula a combustível”, diz Monica Saraiva Panik, especialista em tecnologias de hidrogênio e células a combustível. “A automatização dos processos e a ampliação das fábricas é fundamental para permitir a redução de custos.”
Os projetos em curso podem beneficiar as iniciativas de descarbonização de setores tão diversos quanto siderurgia, mineração, papel e celulose, petroquímica, alimentos e bebidas, fertilizantes e transporte pesado. Nem todas as indústrias, porém, podem adotar o novo hidrogênio de forma imediata. “No setor do aço, será preciso transformar as fábricas ou instalar novos processos de produção, substituindo os altos-fornos”, diz Panik. “Já em transportes, a tecnologia de célula a combustível está madura para produção comercial. Nesse caso, o desafio é que o uso do hidrogênio como combustível requer infraestrutura de abastecimento.”
Iniciativas locais
O Brasil entrou tardiamente nessa corrida, mas tenta agora se recuperar do atraso. Diferentes iniciativas, a maioria delas realizada em estados do Sul, do Sudeste e do Nordeste, buscam colocar de pé projetos que permitam a produção em larga escala. Não faltam atributos para o país ocupar um lugar de destaque nesse mercado. “O Brasil pode se tornar um dos líderes mundiais na produção de hidrogênio verde, graças a fatores como a capacidade crescente de geração de energia eólica, solar e de biomassa. Além disso, conta com um sistema elétrico integrado e uma posição geográfica favorável para exportação, próximo da Europa e da Costa Leste americana”, diz Gilney Bastos, presidente da White Martins e da Linde na América do Sul (a White Martins representa na região a alemã Linde, maior empresa de gases industriais do mundo).
Em dezembro de 2022, a White Martins se tornou a primeira companhia a produzir hidrogênio verde certificado na América do Sul, em sua fábrica localizada no Complexo Industrial de Suape, em Pernambuco. A unidade pode receber até 1,6 megawatt de energia solar para realizar o processo de eletrólise da água e produzir hidrogênio verde.
Nos últimos dois anos, a White Martins firmou parcerias com os governos do Ceará, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, e com os complexos portuários de Pecém (CE) e do Açu (RJ), com o objetivo de realizar estudos de viabilidade para a implantação de projetos de hidrogênio e de amônia verdes. Além disso, em parceria com a montadora Toyota, desenvolveu no Brasil um sistema que viabilizou o abastecimento com hidrogênio do Mirai, um dos automóveis elétricos movidos a célula a combustível da fabricante japonesa.
“O hidrogênio verde tem um papel crítico para a descarbonização de setores de difícil abatimento, ou seja, aqueles em que a transição para uma produção de baixo carbono é considerada mais desafiadora”, diz Ludmila Nascimento, diretora de energia e descarbonização da mineradora Vale — cuja meta é atingir a emissão líquida zero de carbono até 2050. A empresa busca meios de superar os desafios estruturais para a produção de aço a partir de fontes de baixas emissões.
Entre os caminhos considerados pela Vale está a construção dos chamados megahubs. Nesses complexos industriais será fabricado o hot briquetted iron (HBI), um produto intermediário fundamental na produção do aço de baixo carbono. “Com o uso de hidrogênio verde, é possível chegar à emissão zero na fabricação de aço”, afirma Nascimento. “A Vale está numa posição única de grande demandante de energia renovável e ofertante de minério de ferro de alta qualidade, elementos essenciais para viabilizar a economia do hidrogênio verde e a fabricação de produtos siderúrgicos de baixo carbono.”
Na frente da mobilidade, a mineradora vem estudando a adoção de combustíveis alternativos em suas ferrovias, como a amônia verde, produzida a partir do hidrogênio. Em julho deste ano, a Vale firmou um acordo com a Wabtec, fornecedora de equipamentos, para iniciar estudos de desenvolvimento da amônia verde como combustível nos trens da Estrada de Ferro Carajás. “Hoje a Vale consome 1 bilhão de litros de diesel por ano, dos quais 500 milhões na ferrovia. Se empregarmos a amônia verde no lugar do diesel em nossas locomotivas, poderemos impulsionar a demanda por esse produto no país”, diz Ludmila Nascimento.
Outro acordo, assinado em setembro com a produtora de aço verde sueca H2 Green Steel, envolve o desenvolvimento de hubs industriais no Brasil e na América do Norte. Nesses complexos, a H2 Green Steel pretende fabricar produtos da cadeia siderúrgica de baixo carbono, como o HBI, usando como insumos briquetes de minério de ferro produzidos pela Vale e eletricidade de fontes renováveis para suprir a produção do hidrogênio verde que será necessário.
Janela de oportunidade
Com uma das matrizes elétricas mais verdes entre países de grande dimensão, o Brasil tem condições de ampliar a oferta de hidrogênio verde tanto para o consumo local quanto para a exportação, uma vez que os preços da energia renovável no país são competitivos, de acordo com Eduardo Capelastegui, presidente da Neoenergia, empresa que atua nas áreas de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia e que pertence ao grupo espanhol Iberdrola. O grupo tem, na cidade espanhola de Puertollano, a maior unidade de H2V de uso industrial da Europa.
“O hidrogênio verde é uma alternativa viável e limpa para descarbonizar setores que enfrentam dificuldades no processo de redução de emissões”, afirma Capelastegui. Ele cita como exemplo os fertilizantes nitrogenados — o Brasil é o quarto maior consumidor global desse item, importando 95% do que consome. “A produção nacional de fertilizantes com uma matriz renovável pode reduzir a dependência externa desse importante insumo para o agronegócio. O país passaria a exportar produtos de alto valor agregado, com baixa pegada de emissão de carbono.”
Um dos entraves para impulsionar a produção de hidrogênio verde no Brasil é a falta de um marco regulatório que, entre outras coisas, estabeleça as normas técnicas e dê segurança jurídica para os investimentos — atualmente, há mais de uma proposta de marco regulatório do setor tramitando no Congresso Nacional. Para a consultora Monica Panik, o país deve apertar os passos se não quiser ficar para para trás nessa corrida. “O Brasil precisa aproveitar a janela de seis anos, até 2030, quando o setor do hidrogênio global atingirá a maturidade”, afirma ela. “É preciso definir o ambiente regulatório para o setor e estabelecer um plano nacional de longo prazo para dar segurança aos investidores.” O tempo está correndo. Mas o Brasil tem tudo para chegar lá.
Nota: a consultora Monica Saraiva Panik deixou a diretoria de relações institucionais da ABH2 em julho de 2023
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição especial nº 2871