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Alvo de polêmicas, as hidrelétricas vivem tempo de incertezas no Brasil

Em meio a questões socioambientais, a energia gerada pelas águas continuará a ter um papel fundamental no país

Por Flávio Bosco
8 dez 2023, 06h00

Quando as primeiras turbinas da hidrelétrica de Belo Monte entraram em operação, em 2016, a tônica dos discursos das autoridades era a grandiosidade da usina. O colosso erguido no meio da Amazônia tem capacidade de 11 233 megawatts (MW), que o colocam como a segunda maior hidrelétrica do país e a quinta do mundo. O empreendimento, no entanto, ficou marcado pelos impactos ambientais e sociais em terras indígenas e no curso do rio Xingu — os protestos contra a construção da usina chegaram a reunir ativistas em Nova York, entre eles a atriz Sigourney Weaver, que interpretou a doutora Grace Augustine no filme Avatar, um épico sobre os efeitos devastadores da exploração de recursos naturais.

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Belo Monte virou uma obra emblemática do fim da era das grandes usinas. Nos últimos anos, apenas nove hidrelétricas entraram em operação no país. A maior delas com 700 MW de potência — quase nada em comparação com Belo Monte. Isso porque o potencial hídrico ainda disponível para a construção de grandes usinas no Brasil está concentrado no norte do país, sobretudo na Região Amazônica. O desafio é erguer empreendimentos dessa envergadura na maior floresta tropical do planeta — uma região plana, que exigiria o alagamento de áreas enormes para a construção de reservatórios.

“É uma pena os povos indígenas não poderem também participar dos negócios, inclusive hidrelétricas, como acontece em outros países como Estados Unidos e Canadá. Aqui são tratados como incapazes de negociar por si mesmos, e sempre alguém — que não os indígenas — trata de dizer o que é melhor para eles”, diz Rafael Kelman, especialista da consultoria em energia PSR. As desavenças ajudaram a afundar o debate relativo à expansão hidrelétrica no Brasil. O projeto da usina São Luiz do Tapajós, no Pará, com potencial de 8 040 MW, nem sequer saiu do papel após o Ibama arquivar o processo de licenciamento ambiental. “Hoje a construção dessas grandes usinas na região Norte é absolutamente inviável”, afirma Luiz Eduardo Barata, ex-diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e atual presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia.

Isso não significa um ponto-final para a hidreletricidade. A energia gerada pela água vai continuar sendo a fonte mais importante da matriz elétrica brasileira nos próximos anos. No início da próxima década, segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, estudo elaborado pela estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 45% da energia elétrica do país virá de usinas hidrelétricas. Hoje, a energia elétrica gerada pela vazão de água nas turbinas iguala a soma de todos os outros recursos energéticos.

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OPÇÃO - PCH Garganta da Jararaca, em Mato Grosso: usinas menores reduzem os impactos (Atiaia Renováveis/Divulgação)

Essa participação já foi maior: até o final dos anos 1990, as hidrelétricas eram responsáveis por 90% da matriz elétrica brasileira. Entre 1960 e 2000, o Brasil soube aproveitar bem a abundância de rios e que­das-d’água. Nesse período, a hidrelétrica era a alternativa econômica mais atraente para atender à expansão necessária. Além disso, o planejamento e os investimentos do setor eram atribuições de empresas estatais verticalizadas (responsáveis desde a geração até a distribuição da energia elétrica), o que favoreceu o financiamento dos projetos de grande porte.

O quadro começou a mudar em 1997 com a reforma do setor elétrico brasileiro. As atividades de geração, transmissão e distribuição de energia foram fracionadas e o papel do Estado foi redefinido. Em 2001, quando o país enfrentou o maior racionamento de energia elétrica de sua história, o governo decidiu incentivar a construção de usinas termelétricas movidas a gás natural importado da Bolívia para depender menos do regime hidrológico. A privatização da Eletrobras, em 2022, representou a mais recente página virada nos rumos da geração hidrelétrica no país. “Ainda temos potenciais de menor porte nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e até na Região Sul. Obviamente que elas não são tão economicamente vantajosas quanto as grandes hidrelétricas”, diz Barata.

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Pequenas usinas

Nos últimos anos, as hidrelétricas têm cedido espaço para projetos de geração eólica e solar. Esses projetos demandam investimentos menores, possuem tempos de implementação mais curtos e, consequentemente, proporcionam tarifas mais baixas para os consumidores. O Novo PAC, programa de investimentos apresentado neste ano pelo governo federal, lista entre os projetos do eixo Transição e Segurança Energética uma hidrelétrica e vinte pequenas centrais hidrelétricas, que terão capacidade de adicionar 256 MW à oferta de energia elétrica. É 5% do que os 120 novos parques eólicos ou 3% da potência que as 196 usinas solares previstas deverão adicionar no mesmo período. Nesse ritmo, até 2040, as energias solar e eólica devem superar, juntas, a capacidade de geração das hidrelétricas, conforme indica o “New Energy Outlook”, relatório elaborado pela empresa Bloomberg New Energy Finance.

Nos últimos anos, parte da energia elétrica acrescentada ao sistema brasileiro veio das pequenas centrais hidrelétricas (PCH), uma categoria de usinas com capacidade de 5 MW a 30 MW, que contou com subsídios na tarifa de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (a chamada energia incentivada) e a contratação compulsória estabelecida por lei. Em novembro de 2023, as PCHs em operação no país somavam 7 200 MW, de acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica. Além das PCHs em construção, a EPE estima um potencial de 14 000 MW para essas usinas de pequeno porte. Como comparativo, a capacidade atual das usinas hidrelétricas totaliza quase 104 000 MW.

Ainda assim, o Brasil pode tirar mais energia das hidrelétricas existentes por meio da repotenciação — processo que pode envolver a troca de componentes, a construção de uma nova casa de força ou a instalação de unidades geradoras em poços existentes para tornar as usinas mais eficientes e ampliar a capacidade instalada. Até 2030, de acordo com um relatório da Associação Internacional de Hidreletricidade, mais da metade da capacidade hidrelétrica mundial deverá passar por repotenciação ou modernização de instalações.

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Os estudos da EPE com 51 usinas (todas com mais de 25 anos de operação e potência instalada superior a 100 MW) indicam que há um potencial de 3 000 a 11 000 MW, com orçamento menor e menos dificuldade no licenciamento ambiental em relação à construção de uma nova usina — o investimento médio observado em usinas já repotenciadas ou ampliadas vai de 1 000 a 5 000 reais por quilowatt, dependendo das características do empreendimento, até metade do valor das últimas usinas construídas no país.

Especialistas também defendem o modelo de usina reversível — a água não utilizada no período chuvoso é armazenada em um segundo reservatório e pode ser bombeada nos períodos de seca. “Isso aumenta a capacidade de armazenamento e o ONS pode usar a energia armazenada para ter a flexibilidade necessária ao atendimento à demanda. Esse talvez seja o ponto mais inovador e o caráter mais estratégico das hidrelétricas”, diz o professor Nivalde de Castro, do Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A despeito de sua presença preponderante na matriz, a geração hidrelétrica ganha outra importância em face da característica intermitente das fontes eólica e solar, que dependem de fatores climáticos para gerarem eletricidade. Como o sol não brilha nem o vento sopra 24 horas por dia, outro recurso precisa complementar a oferta de energia para dar mais segurança ao sistema elétrico. Hoje essa regulação é feita em parte pelas hidrelétricas e em parte pela operação de usinas termelétricas — até mesmo por baterias, em outras partes do mundo. “Antes o sistema hidrelétrico era especialmente importante para garantir potência e energia. Agora ele passa a ter um papel muito mais relevante, de estabilizar a inserção daquelas fontes, que entram à medida que o recurso esteja disponível”, diz Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.

Na ponta do lápis, a energia elétrica gerada pela vazão de água é a alternativa mais econômica quando comparada à geração termelétrica, que queima combustível para gerar vapor e mover turbinas. Resta saber quanto vale esse atributo na contratação da energia. “Há um problema no modelo de precificação e o sistema não tira proveito das grandes vantagens que esse novo cabedal de recursos emergentes permite para o país”, afirma Sauer.

Em tempos de transição energética, as hidrelétricas continuam sendo projetadas e construídas no mundo, principalmente no continente asiático. “Os números da China, por exemplo, são impressionantes. Até 2030, o país vai instalar 80 GW em hidrelétricas. Para usinas reversíveis, o plano é instalar 120 GW até lá”, diz Kelman da PSR. Está claro que uma matriz elétrica sustentável — e equilibrada — não pode abrir mão das hidrelétricas.

Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição especial nº 2871

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