Brics: sem avanços, Lula antagoniza com Ocidente e agrada à China
A ausência de objetivos compartilhados entre os integrantes é, sem dúvida, uma trava para que o bloco ganhe relevo
De volta aos holofotes globais, o presidente Lula ocupou desta vez o palco em Joanesburgo, na África do Sul, onde houve o encontro do Brics (acrônimo para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), encerrado na quinta-feira 24. Cada integrante do grupo, formado em 2009 por potências emergentes, exercitou ali sua capacidade de tecer costuras diplomáticas e aproveitou para exprimir sua visão de mundo — o que, no caso de Lula, veio recheado de uma retórica que deixa clara sua crítica ao domínio geopolítico do G7, a turma das sete nações mais ricas, encabeçada pelos Estados Unidos.
Como vem fazendo em outras reuniões dessa natureza, o presidente entoou discurso permeado de referências à questão ambiental e às desigualdades planetárias, que agrada a ouvidos de diferentes matizes ideológicos, e carregou nas tintas, como de hábito, em frases prontas para ecoar internamente, na plateia brasileira à esquerda. Afirmou, entre outras coisas, que a União Europeia não terá espaço para exercer um “neocolonialismo verde” e que “a gente quer criar um banco “maior do que o FMI”, cujos empréstimos são “quase um cabresto.”
O encontro do Brics deu-se em um momento em que seus membros originais — aos quais se somaram agora Arábia Saudita, Argentina, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Irã — estão às voltas com agendas distintas. A do Brasil é firmar o país na liderança do chamado Sul Global, conjunto de economias em desenvolvimento, com Lula à frente. A África do Sul quer fincar bandeira por todo o continente africano e, por isso, o presidente Cyril Ramaphosa saiu distribuindo acenos aos vizinhos para que ingressem no bloco — gesto visto como excessivo pelo primeiro-ministro indiano Narendra Modi, que sempre preferiu uma configuração mais enxuta.
A Rússia de Vladimir Putin (que não compareceu para não correr riscos, já que contra ele pesa um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional) busca expandir seus tentáculos para atenuar o isolamento com a guerra da Ucrânia. Já a China, sob as mãos de ferro de Xi Jinping, planeja espalhar a ambiciosa Rota da Seda, costurando acordos comerciais pelo globo de modo a reanimar sua economia, que vem perdendo vigor (leia na pág. 54). “A estratégia chinesa é aumentar sua zona de influência em todas as direções”, resume Alexis Habiyaremye, da Faculdade de Negócios da Universidade de Johanesburgo.
O mais mercurial ponto à mesa foi justamente a adesão de uma leva de países que já dá ao bloco novas feições. Impulsionadas pela campanha do governo Xi, mais de quarenta nações manifestaram interesse em entrar para o rol — 23 delas protocolaram pedido formal. Os sócios seguem discordando sobre os critérios de admissão e o ritmo em que se dará, algo que a China, membro mais poderoso, deseja acelerar para ganhar terreno no duelo por poder com os Estados Unidos. Para o Brasil, o jogo posto desse jeito não interessa, uma vez que, com muita gente, a influência de Lula no bloco se dilui. Além disso, o tom de antagonismo com o Ocidente, elevado pela China, se impõe. “O Brics pode ser um bom caminho para o Brasil se colocar no tabuleiro e abrir oportunidades, mas não interessa em nada insuflar uma rivalidade com Europa e Estados Unidos”, enfatiza o ex-embaixador Marcos Azambuja.
Como vem se observando desde o marco zero do terceiro mandato de Lula, cuja estreia no cenário internacional se deu na Argentina, onde ele reeditou discursos ideológicos de outras eras, em Joanesburgo a ideia da formação de uma nova ordem mundial esteve de novo presente. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi cauteloso ao dizer que o avanço do Brics não significa uma queda de braço com a porção desenvolvida do planeta, mas Celso Amorim, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, a quem Lula ouve o tempo todo, disparou: “O mundo não pode mais seguir os ditames do G7”. Não custa lembrar que, em 2022, as exportações brasileiras para os Estados Unidos cravaram 37,4 bilhões de dólares e para a União Europeia, 50,9 bilhões. No caso da África, as cifras ficaram em 12,8 bilhões.
O espinhoso tema da guerra na Ucrânia, aventado para entrar na roda, foi apenas tangenciado — e Lula mais uma vez se esquivou de falar com todas as letras que a Rússia é o país invasor (durante o evento, aliás, chegou a notícia de que o líder mercenário do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, que tentou derrubar Putin, havia morrido na queda de um jatinho; no dia seguinte, o próprio presidente russo foi à TV, enviou condolências à família do adversário e lamentou que ele tivesse “cometido sérios erros na vida”). Sem o conflito levado à mesa, as atenções, portanto, se concentraram na economia, e Lula aproveitou para expor na vitrine global o seu pleito de fazer do Brasil membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Até o último instante, a diplomacia brasileira tentou convencer o governo de Xi a apoiar oficialmente o movimento. Em troca, prometia endossar o desejo chinês de incluir países às dezenas no barco do Brics. Não funcionou do modo imaginado. E o restante da agenda brasileira, por ora, ficou no discurso.
Como seus colegas de bloco, Lula se manifestou a favor de mudanças no FMI e no Banco Mundial, instituições concebidas pelas nações vencedoras da II Guerra Mundial no que ficou conhecido como Acordos de Bretton Woods, de 1944. Para dar gás à reconfiguração de forças, o brasileiro acredita que o caminho passa pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o “banco do Brics”, atualmente presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff, e pela criação de uma moeda comum para transações comerciais. Seria uma forma de reduzir o uso do dólar, outro ponto que, vira e mexe, emerge no verbatim presidencial. A proposta, porém, é vista com cautela por especialistas. “Não se inventa uma moeda por decreto. É preciso haver um mercado comum sólido entre os países, o que não acontece no caso do Brics”, afirma Lia Valls, pesquisadora de Economia Aplicada da FGV-RJ. Outra ponderação é que, com economias em estágios tão diversos, o projeto soa utópico.
Desde o princípio, a trajetória do Brics se difere da de outros blocos. Criado em 2001 pelo economista britânico Jim O’Neill, o acrônimo nasceu como “BRIC”, já que a África do Sul (de onde vem o “S”, do inglês South Africa) só ingressaria no time uma década mais tarde. Àquela altura, os quatro países somavam um terço da população mundial e 8% do PIB (hoje respondem por 32%). O primeiro encontro, em meio à tensão financeira provocada pela crise econômica global, seria apenas em 2009, na Rússia. Sob o chapéu de emergentes, cada um caminhou à sua própria velocidade, mas nenhum avançou como a China, embalada durante muito tempo por um crescimento na casa dos dois dígitos.
Até aqui, o Brics pouco tem a exibir de resultados concretos. A ausência de objetivos compartilhados entre os integrantes é, sem dúvida, uma trava para que o bloco ganhe relevo. O pleito dos vários países que ainda pretendem aderir ao grupo será examinado — alguns podem ter status de parceiros, sem direito a voto. Para o Brasil, a cúpula deixa o amargo sabor de voltar para casa sem o endosso chinês ao tão almejado ingresso no Conselho de Segurança da ONU — a declaração final não cita o assunto explicitamente, apoiando apenas o “maior papel” que o país e outros em desenvolvimento devem ter em organismos internacionais. Pelo menos um efeito prático o encontro rendeu. Atento ao ímpeto expansionista de Pequim, o presidente americano Joe Biden veio a público defender uma reforma em órgãos multilaterais como FMI e Banco Mundial, ideia que promete apresentar na reunião do G20, em Nova Délhi, em setembro. Com a mexida, as nações em desenvolvimento levariam 50 bilhões de dólares em empréstimos. Mais uma mostra de que não vale a pena se enredar em ideologias que não raro cheiram a mofo. Na diplomacia, é o pragmatismo que faz a roda girar.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856