Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Brics: sem avanços, Lula antagoniza com Ocidente e agrada à China

A ausência de objetivos compartilhados entre os integrantes é, sem dúvida, uma trava para que o bloco ganhe relevo

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 10h12 - Publicado em 25 ago 2023, 06h00

De volta aos holofotes globais, o presidente Lula ocupou desta vez o palco em Joanesburgo, na África do Sul, onde houve o encontro do Brics (acrônimo para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), encerrado na quinta-feira 24. Cada integrante do grupo, formado em 2009 por potências emergentes, exercitou ali sua capacidade de tecer costuras diplomáticas e aproveitou para exprimir sua visão de mundo — o que, no caso de Lula, veio recheado de uma retórica que deixa clara sua crítica ao domínio geopolítico do G7, a turma das sete nações mais ricas, encabeçada pelos Estados Unidos.

Como vem fazendo em outras reuniões dessa natureza, o presidente entoou discurso permeado de referências à questão ambiental e às desigualdades planetárias, que agrada a ouvidos de diferentes matizes ideológicos, e carregou nas tintas, como de hábito, em frases prontas para ecoar internamente, na plateia brasileira à esquerda. Afirmou, entre outras coisas, que a União Europeia não terá espaço para exercer um “neocolonialismo verde” e que “a gente quer criar um banco “maior do que o FMI”, cujos empréstimos são “quase um cabresto.”

DE MOSCOU - Putin fala por vídeo: busca por parceiros em meio ao isolamento
DE MOSCOU - Putin fala por vídeo: busca por parceiros em meio ao isolamento (Per-Anders Pettersson/Getty Images)

O encontro do Brics deu-se em um momento em que seus membros originais — aos quais se somaram agora Arábia Saudita, Argentina, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Irã — estão às voltas com agendas distintas. A do Brasil é firmar o país na liderança do chamado Sul Global, conjunto de economias em desenvolvimento, com Lula à frente. A África do Sul quer fincar bandeira por todo o continente africano e, por isso, o presidente Cyril Ramaphosa saiu distribuindo acenos aos vizinhos para que ingressem no bloco — gesto visto como excessivo pelo primeiro-ministro indiano Narendra Modi, que sempre preferiu uma configuração mais enxuta.

A Rússia de Vladimir Putin (que não compareceu para não correr riscos, já que contra ele pesa um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional) busca expandir seus tentáculos para atenuar o isolamento com a guerra da Ucrânia. Já a China, sob as mãos de ferro de Xi Jinping, planeja espalhar a ambiciosa Rota da Seda, costurando acordos comerciais pelo globo de modo a reanimar sua economia, que vem perdendo vigor (leia na pág. 54). “A estratégia chinesa é aumentar sua zona de influência em todas as direções”, resume Alexis Habiyaremye, da Faculdade de Negócios da Universidade de Johanesburgo.

Continua após a publicidade
E A UCRÂNIA? - Cúpula passou ao largo da guerra: de novo, o presidente brasileiro omitiu o nome do invasor, a Rússia
E A UCRÂNIA? - Cúpula passou ao largo da guerra: de novo, o presidente brasileiro omitiu o nome do invasor, a Rússia (Ukranian Emergency Service/AFP)

O mais mercurial ponto à mesa foi justamente a adesão de uma leva de países que já dá ao bloco novas feições. Impulsionadas pela campanha do governo Xi, mais de quarenta nações manifestaram interesse em entrar para o rol — 23 delas protocolaram pedido formal. Os sócios seguem discordando sobre os critérios de admissão e o ritmo em que se dará, algo que a China, membro mais poderoso, deseja acelerar para ganhar terreno no duelo por poder com os Estados Unidos. Para o Brasil, o jogo posto desse jeito não interessa, uma vez que, com muita gente, a influência de Lula no bloco se dilui. Além disso, o tom de antagonismo com o Ocidente, elevado pela China, se impõe. “O Brics pode ser um bom caminho para o Brasil se colocar no tabuleiro e abrir oportunidades, mas não interessa em nada insuflar uma rivalidade com Europa e Estados Unidos”, enfatiza o ex-embaixador Marcos Azambuja.

Como vem se observando desde o marco zero do terceiro mandato de Lula, cuja estreia no cenário internacional se deu na Argentina, onde ele reeditou discursos ideológicos de outras eras, em Joanesburgo a ideia da formação de uma nova ordem mundial esteve de novo presente. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi cauteloso ao dizer que o avanço do Brics não significa uma queda de braço com a porção desenvolvida do planeta, mas Celso Amorim, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, a quem Lula ouve o tempo todo, disparou: “O mundo não pode mais seguir os ditames do G7”. Não custa lembrar que, em 2022, as exportações brasileiras para os Estados Unidos cravaram 37,4 bilhões de dólares e para a União Europeia, 50,9 bilhões. No caso da África, as cifras ficaram em 12,8 bilhões.

Continua após a publicidade

O espinhoso tema da guerra na Ucrânia, aventado para entrar na roda, foi apenas tangenciado — e Lula mais uma vez se esquivou de falar com todas as letras que a Rússia é o país invasor (durante o evento, aliás, chegou a notícia de que o líder mercenário do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, que tentou derrubar Putin, havia morrido na queda de um jatinho; no dia seguinte, o próprio presidente russo foi à TV, enviou condolências à família do adversário e lamentou que ele tivesse “cometido sérios erros na vida”). Sem o conflito levado à mesa, as atenções, portanto, se concentraram na economia, e Lula aproveitou para expor na vitrine global o seu pleito de fazer do Brasil membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Até o último instante, a diplomacia brasileira tentou convencer o governo de Xi a apoiar oficialmente o movimento. Em troca, prometia endossar o desejo chinês de incluir países às dezenas no barco do Brics. Não funcionou do modo imaginado. E o restante da agenda brasileira, por ora, ficou no discurso.

VENCEDORES - EUA e aliados na reunião de 1944: definição de uma nova ordem
VENCEDORES - EUA e aliados na reunião de 1944: definição de uma nova ordem (Bettmann Archive/Getty Images)

Como seus colegas de bloco, Lula se manifestou a favor de mudanças no FMI e no Banco Mundial, instituições concebidas pelas nações vencedoras da II Guerra Mundial no que ficou conhecido como Acordos de Bretton Woods, de 1944. Para dar gás à reconfiguração de forças, o brasileiro acredita que o caminho passa pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o “banco do Brics”, atualmente presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff, e pela criação de uma moeda comum para transações comerciais. Seria uma forma de reduzir o uso do dólar, outro ponto que, vira e mexe, emerge no verbatim presidencial. A proposta, porém, é vista com cautela por especialistas. “Não se inventa uma moeda por decreto. É preciso haver um mercado comum sólido entre os países, o que não acontece no caso do Brics”, afirma Lia Valls, pesquisadora de Economia Aplicada da FGV-RJ. Outra ponderação é que, com economias em estágios tão diversos, o projeto soa utópico.

Continua após a publicidade

Desde o princípio, a trajetória do Brics se difere da de outros blocos. Criado em 2001 pelo economista britânico Jim O’Neill, o acrônimo nasceu como “BRIC”, já que a África do Sul (de onde vem o “S”, do inglês South Africa) só ingressaria no time uma década mais tarde. Àquela altura, os quatro países somavam um terço da população mundial e 8% do PIB (hoje respondem por 32%). O primeiro encontro, em meio à tensão financeira provocada pela crise econômica global, seria apenas em 2009, na Rússia. Sob o chapéu de emergentes, cada um caminhou à sua própria velocidade, mas nenhum avançou como a China, embalada durante muito tempo por um crescimento na casa dos dois dígitos.

Até aqui, o Brics pouco tem a exibir de resultados concretos. A ausência de objetivos compartilhados entre os integrantes é, sem dúvida, uma trava para que o bloco ganhe relevo. O pleito dos vários países que ainda pretendem aderir ao grupo será examinado — alguns podem ter status de parceiros, sem direito a voto. Para o Brasil, a cúpula deixa o amargo sabor de voltar para casa sem o endosso chinês ao tão almejado ingresso no Conselho de Segurança da ONU — a declaração final não cita o assunto explicitamente, apoiando apenas o “maior papel” que o país e outros em desenvolvimento devem ter em organismos internacionais. Pelo menos um efeito prático o encontro rendeu. Atento ao ímpeto expansionista de Pequim, o presidente americano Joe Biden veio a público defender uma reforma em órgãos multilaterais como FMI e Banco Mundial, ideia que promete apresentar na reunião do G20, em Nova Délhi, em setembro. Com a mexida, as nações em desenvolvimento levariam 50 bilhões de dólares em empréstimos. Mais uma mostra de que não vale a pena se enredar em ideologias que não raro cheiram a mofo. Na diplomacia, é o pragmatismo que faz a roda girar.

Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.