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Antes impensável, aliança entre Lula e Centrão começa a ganhar força

Depois de seis meses de uma relação marcada por embates, o Planalto e os parlamentares do grupo articulam elo político que pode ser decisivo para o país

Por Daniel Pereira, Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h14 - Publicado em 14 jul 2023, 06h00

Com raras exceções, não há adversário na política que não possa, com o passar do tempo, tornar-se um aliado. Na campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro demonizou o Centrão, grupo ao qual se rendeu incondicionalmente, já como presidente da República, para garantir um mínimo de estabilidade a seu governo. A parceria deu certo, e hoje o capitão está filiado ao PL, partido de Valdemar Costa Neto, expoente da velha política que Bolsonaro tanto prometeu aos eleitores que combateria. Lula também é um especialista na arte da conciliação. Em seus tempos de oposição, ele chamou José Sarney de ladrão, mas anos depois, quando dava expediente no Palácio do Planalto, disse que o ex-presidente — que o ajudava a domar o então influente MDB — não podia ser tratado como uma pessoa comum. Do então tucano Geraldo Alckmin, Lula ouviu poucas e boas no campo da ética durante anos, o que não o impediu de compor com o antigo rival, que agora é vice-presidente da República. Não há animosidade que resista ao pragmatismo dos políticos. Sem qualquer tipo de constrangimento, o ataque desferido hoje dá lugar a um abraço fraternal amanhã. É tudo uma questão de conveniência — ou de necessidade.

A arrastada negociação entre Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é mais uma prova de que quase não há diferenças incontornáveis nessa seara. Os dois estiveram em campos opostos na corrida presidencial passada, não têm relação de amizade e não nutrem simpatia pessoal um pelo outro. A desconfiança impera de lado a lado. Apesar disso, estão cada vez mais próximos de selar uma aliança que pode render dividendos a ambos. Se conseguir compor com Lira, o presidente da República espera incorporar à sua base o Centrão e a massa de deputados liderada pelo comandante da Casa, que é o parlamentar mais poderoso do país. Há menos de um ano, um acerto desse tipo parecia difícil, considerando-se as declarações dadas na época. Na campanha de 2022, Lula disse, por exemplo, que, se ganhasse a eleição, daria um jeito no Centrão e afirmou que Lira agia como se fosse o imperador do Japão. A tensão entre as partes ainda persiste, mas está perdendo força de forma gradativa. Desde o início do mandato do petista, Lira repete que a articulação política do governo é falha e que a base aliada na Câmara está desorganizada. Ele sempre defendeu, como solução para o problema, o receituário tradicional — distribuição de cargos e recursos pedidos pelos congressistas.

SUSPEITA - Flávio Dino: operação da PF foi interpretada como retaliação oficial
SUSPEITA - Flávio Dino: operação da PF foi interpretada como retaliação oficial (Horacio Villalobos/Corbis/Getty Images)

Do outro lado do balcão, ministros de Lula seguraram essas contrapartidas quanto puderam, até que os deputados, em reação, ameaçaram derrubar a medida provisória que reestruturava o governo e desenhava o novo ministério. O Planalto se viu obrigado a ceder um pouco, deu início ao empenho de emendas parlamentares (leia a matéria na pág. 32) e passou a negociar a ampliação de espaços de partidos do Centrão na máquina pública. Tudo de forma um tanto quanto arrastada — no modo “enrolation”, dizia-se na Câmara. Lira e companhia nunca consideraram esses gestos iniciais suficientes e, para viabilizar o avanço de pautas prioritárias do governo, passaram a cobrar o comando de pastas de ponta, como a Saúde, e a liberação de 9,8 bilhões de reais do antigo orçamento secreto, que hoje estão sob responsabilidade dos ministérios. Há pelo dois meses a negociação se mantinha mais ou menos nesses termos, sem avançar nem ser engavetada. A situação, porém, começou a mudar em julho, quando a Câmara aprovou a reforma tributária e o projeto que restitui o voto de qualidade a favor da União no conselho administrativo que julga litígios entre o Fisco e os contribuintes, o Carf.

SOB ATAQUE - Nísia Trindade: o lugar da ministra é uma das exigências dos deputados para garantir apoio ao governo
SOB ATAQUE - Nísia Trindade: o lugar da ministra é uma das exigências dos deputados para garantir apoio ao governo (Rafael Nascimento/MS/.)
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Lira demonstrou mais uma vez que controla as decisões do plenário e que aprova as matérias de interesse do governo se e quando quiser. De quebra, marcou pontos com o establishment, ao dar seguimento a propostas de interesse do país. Apesar do protagonismo do deputado, Lula gostou do resultado. A avaliação positiva do governo no mercado financeiro, por exemplo, deu um salto (leia a matéria na pág. 46). A possibilidade de um acordo, então, ganhou tração. Falta acertar os detalhes. É justamente aí que a desconfiança de lado a lado funciona como um freio. Ao contrário do que queria o governo, Lira colocou em votação a reforma tributária e o projeto do Carf, mas não a proposta do novo arcabouço fiscal, que depende de uma análise derradeira dos deputados, não por acaso adiada para o segundo semestre. O parlamentar e seus colegas de Centrão entenderam que, se entregassem tudo de uma vez ao governo, ficariam sem ativos para mercadejar e correriam o risco de não receber as devidas contrapartidas. A equipe de Lula fez raciocínio parecido. O presidente não compartilhou os ministérios e as estatais reivindicadas, nem distribuiu as verbas do antigo orçamento secreto (na velocidade exigida pelos parlamentares), por considerar que sempre receberá pedidos e, por isso, é preciso dosar nas concessões.

Não à toa, Lula declarou que mudanças em cargos de primeiro escalão (com exceção do Turismo), se ocorrerem, serão realizadas a partir de agosto, quando serão retomados os trabalhos do Legislativo. A fatura de Lira e do Centrão é salgada. Há cerca de dois meses, o presidente da Câmara pediu a Lula a demissão do chefe da Casa Civil, Rui Costa, e sugeriu também a exoneração do ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Os dois continuaram no governo, mas Rui Costa, que era o alvo preferencial da ira, foi obrigado a chamar Lira e o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento, seu adversário político na Bahia, para conversar. Hoje os objetivos dos deputados são mais ambiciosos. Lira e companhia ainda não desistiram de assumir a Saúde, comandada por Nísia Trindade, mas, como parece que dificilmente conseguirão, apresentaram como alternativas os ministérios do Desenvolvimento Social e do Esporte. Eles também querem cargos de comando na Caixa e em órgãos públicos com dinheiro e presença nos municípios, como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Há cobrança ainda para que o governo acelere a liberação das verbas do antigo orçamento.

arte acasalamento

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Em troca desses espaços, haveria a adesão de parte das bancadas do PP e do Republicanos à base aliada. Lula, que conta com 140 deputados fiéis, alcançaria a marca de pelo menos 280 dos 513 deputados. Ou seja, a maioria da Casa. “Hoje, dependendo da matéria, 80% da nossa bancada apoia o governo mesmo sem ter nenhum cargo. O partido avalia que algumas matérias são essenciais para o país, como a reforma tributária e o arcabouço”, diz o líder do PP na Câmara, André Fufuca (MA), cotado pela legenda para substituir o petista Wellington Dias no Ministério de Desenvolvimento Social. Presidente do PP e ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira afirma que não vetará a nomeação de colegas para o governo, mas que não haverá adesão formal da sigla a Lula. Ele acrescenta que eventuais embarques de correligionários na base aliada têm de ser creditados à ação de Lira. “A base do governo depende do Arthur. Acho que ele quer se livrar dessa responsabilidade de toda hora ter de convencer os deputados a votar. Tudo o que foi aprovado foi graças única e exclusivamente ao apelo do Arthur”, declara o senador.

PRAGMATISMO - Bolsonaro e o Centrão: críticas à “velha política” duraram apenas alguns meses
PRAGMATISMO - Bolsonaro e o Centrão: críticas à “velha política” duraram apenas alguns meses (@ciro_nogueira/Twitter)

Numa entrevista recente, Lula admitiu estar conversando com Republicanos e PP. Também está encaminhada a substituição da ministra do Turismo, Daniela do Waguinho, pelo deputado Celso Sabino, uma troca reivindicada pelo União Brasil. De acordo com Elmar Nascimento, que, além de líder da sigla, é braço direito de Lira e candidato à sucessão dele no comando da Câmara, a entrada do presidente da República nas negociações foi fundamental para destravá-las. “Sempre que o presidente entra em campo, as coisas melhoram. O governo, de fato, começou meio bagunçado, mas agora parece que vai engrenar”, declarou. Sob a proteção do anonimato, outro ponta de lança do time de Lira ressalta que a costura da aliança está bem encaminhada, mas só será sacramentada com a efetiva distribuição de cargos e recursos. “O único órgão confiável é o Diário Oficial da União”, diz. Além das moedas de troca habituais, tem peso decisivo no bailado político de Lula e Lira a investigação que apura se houve crimes de fraude em licitação na compra de equipamentos de robótica por municípios alagoanos, inclusive com emendas indicadas pelo presidente da Câmara.

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Um dos assessores mais próximos do deputado foi alvo de uma ação da Polícia Federal, o que levou os advogados de Lira a pedir a suspensão da investigação, sob a alegação de que o alvo verdadeiro, mesmo que oculto, era o próprio parlamentar. Por isso, o caso deveria tramitar não na primeira instância, como ocorria, mas no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes concordou com a tese e suspendeu a investigação. A vitória judicial momentânea não foi suficiente para acalmar totalmente Lira. Em conversas reservadas, ele culpa o ministro da Justiça, Flávio Dino, pela ofensiva da PF sobre seu assessor e alega que o objetivo era atingi-lo. Por enquanto, restringe as críticas a Dino e poupa Lula, dando ao presidente o benefício da dúvida. Em seu terceiro mandato presidencial, Lula sabe muito bem que não vale a pena comprar briga com o presidente da Câmara. Dilma Rousseff não tinha o mínimo de apreço por Eduardo Cunha e, por mais que bombeiros tentassem ajudar, fracassou na costura de um acordo de proteção mútua entre eles. O resultado é conhecido: Cunha abriu o processo de impeachment de Dilma e depois perdeu a presidência da Casa e a liberdade, passando uma temporada preso.

SUCESSÃO - Elmar Nascimento: acordo passa pela candidatura do parlamentar à presidência da Câmara
SUCESSÃO - Elmar Nascimento: acordo passa pela candidatura do parlamentar à presidência da Câmara (Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

Cientes do precedente, Lula e Lira sonham com um jogo totalmente diferente, de ganha-ganha. A reta final dos trabalhos no primeiro semestre na Câmara mostrou ao presidente que um acordo com políticos de centro ajuda a destravar projetos prioritários ao país. Lira e o Centrão também lustram a própria imagem porque, quanto mais contribuem para a modernização do país, menos críticas recebem pelo fisiologismo. No chamado presidencialismo de coalizão brasileiro, os mandatários são compelidos a distribuir cargos e recursos orçamentários em troca de apoio no Congresso. É do jogo e faz parte da estratégia para garantir a chamada governabilidade e a aprovação de projetos. O problema não está nesse modelo, mas no uso que os políticos e seus afilhados fazem da máquina pública, que já resultou em escândalos monumentais de corrupção, como o mensalão e o petrolão.

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Quando Jair Bolsonaro se acertou com os congressistas, entregando-lhes ministérios e o orçamento secreto, Lula e os partidos de esquerda denunciaram com contundência o que chamaram de toma lá dá cá desavergonhado. Na campanha, esse discurso teve forte apelo nas redes sociais. Agora, o mesmo tipo de negociação, com as mesmas moedas de troca, não está causando as mesmas reações. As críticas ao fisiologismo foram substituídas por menções — acertadas — ao pragmatismo e à necessária formação de uma base de sustentação no Congresso. A aproximação do Executivo e do Legislativo está sendo vista com mais naturalidade — e assim deve ser. As negociações que levaram à aprovação de projetos importantes para o país nos últimos seis meses provaram o que democracias mais maduras descobriram há muito tempo: não se avança sem entendimento e concessões. O contrário disso é uma receita para o fracasso.

Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850

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