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8 de Janeiro: autoridades revelam bastidores dos ataques, 6 meses depois

VEJA publica relatos exclusivos de um representante de cada Poder sobre os momentos marcantes do epicentro de um dia triste que não pode ser esquecido

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Leonardo Caldas Atualizado em 4 jun 2024, 10h18 - Publicado em 7 jul 2023, 06h00

Dependendo do observador, os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 podem ser vistos, interpretados e mensurados de ângulos e maneiras diferentes. Uma constatação, porém, é inegável à luz dos fatos: a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes passaram para a história como o dia em que a democracia brasileira foi insultada e afrontada em sua essência por bárbaros agindo sob o impulso de mentes perturbadas que se escondiam — e ainda se escondem — nas sombras. Foi um domingo em que milhões de brasileiros acompanharam, atônitos, cenas execráveis dentro do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF). Seis meses depois, as autoridades ainda divergem sobre o que exatamente teria motivado os ataques. Para uns, foi o primeiro ato de um golpe de Estado que não se concretizou. Para outros, uma baderna derivada do extremismo político.

Era um fim de semana como outro qualquer em Brasília. O presidente Lula visitava bairros atingidos por uma enchente em Araraquara (SP). Com o recesso parlamentar, o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, passeava em Paris. O presidente da Câmara, Arthur Lira, descansava numa praia em Maceió. Rosa Weber, presidente do STF, era uma das poucas autoridades que estavam na cidade, quando milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro deixaram um acampamento montado no QG do Exército em direção à Esplanada. No dia anterior, a Polícia Federal havia advertido sobre a possibilidade de a manifestação descambar para atos de violência. Não houve, porém, reforço algum na segurança.

O Congresso foi o primeiro prédio a ser atacado. Os vândalos quebraram os vidros, destruíram equipamentos, depredaram obras de arte e, de lá, seguiram em direção ao Planalto. Sem resistência, subiram a rampa do palácio e foram arrebentando tudo que encontravam pela frente, até chegar ao gabinete do Presidente da República. A terceira e última escalada foi a que deixou o maior rastro de devastação. Os criminosos atearam fogo no plenário do Supremo, picharam as paredes e simularam defecar sobre os móveis. Foram quatro horas de barbárie. Vencida a perplexidade, as instituições reagiram com vigor. Mais de 1 200 pessoas respondem hoje a processos, cerca de 250 estão presas desde então e uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para apurar o caso. VEJA publica relatos exclusivos de um representante de cada Poder sobre os momentos marcantes que ficaram na memória de quem esteve no epicentro de um dia triste que não pode ser esquecido.

FLÁVIO DINO: “TEVE DEDOS EM RISTE DE LADO A LADO”
Nervoso, o ministro da Justiça discutiu com generais, diz ter certeza de que houve uma tentativa de golpe contra o presidente Lula e afirma que os militares estavam torcendo por uma virada de mesa

ESTOPIM DO LEVANTE - Flávio Dino: ele viu da janela do seu gabinete o momento em que os vândalos iniciaram a destruição
ESTOPIM DO LEVANTE - Flávio Dino: ele viu da janela do seu gabinete o momento em que os vândalos iniciaram a destruição (Andre Ribeiro/Futura Press)
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Eu estava em estado de alerta elevado pelo extremismo daquele pessoal acampado nos quartéis, mas tomei meu café da manhã naquele domingo com a certeza de que todas as providências em relação aos protestos haviam sido garantidas. Logo cedo, recebi uma mensagem do governador do Distrito Federal com relatos de absoluta calmaria. Na sequência, o ministro da Defesa me repassou informações semelhantes. Fui almoçar com minha esposa e meus filhos na casa de um parente a 40 quilômetros da Praça dos Três Poderes. Mal tinha chegado ao local e recebi os primeiros informes de que as coisas não estavam indo bem: vândalos não estavam respeitando os pontos de contenção da Polícia Militar e haviam rompido uma barreira de segurança. Percebi que a coisa poderia sair do controle e rumei para o ministério. Era apenas o início de um dia que ainda não acabou. A invasão do Congresso aconteceu diante dos meus olhos. Da janela do meu gabinete, vi quando a multidão derrubou as grades, jogou uma viatura no espelho d’água e escalou o prédio. Havia uns poucos policiais tentando conter os criminosos. Entrei em pânico. Era preciso falar com o presidente. Aquela invasão poderia incentivar protestos similares em todo o Brasil. Lula estava vendo pela TV. Ficamos com medo de perder o controle do país. Se aquilo se multiplicasse, não teríamos força para superar. O golpe seria consumado. Nervoso, xinguei o Bolsonaro, o bolsonarismo, xinguei quem havia tramado aquilo e as forças de segurança que permitiram aquele caos. Invadiram o Planalto e estavam quebrando tudo. Da minha janela vi uma fumacinha preta subindo do prédio do Supremo. Estavam tocando fogo no STF. O caos havia se espalhado. Era preciso agir rápido. Minha ordem era prender todo mundo. Mas nem isso foi possível de imediato.

Depois da destruição, deu-se um embate com os militares. Fui ao Quartel do Exército e disse que a gente ia prender todo mundo que estava no acampamento. Foi quando vi tanques saindo de uma ruazinha. Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que um golpe estava em andamento, ela se dissipou naquele momento. A maioria do Alto-Comando torcia — e friso este verbo, torcia — para que o levante tivesse dado certo. Repeti sem parar para o comandante do Exército: ‘General, nós vamos pegar todos, sem exceção. É a minha ordem’. Ele tentou crescer para cima de mim. Teve dedos em riste de lado a lado. A adrenalina estava a mil. Eu repetia: ‘Estão todos presos, estão todos presos’. Ele dizia: ‘Não, não, não’. No meio dessa discussão, outro general interveio e disse que a polícia nunca tinha entrado no quartel para prender pessoas. Essa é uma evidência acima de qualquer dúvida razoável de que havia a simpatia nas Forças por uma virada de mesa. O Exército estava dividido entre bolsonaristas golpistas e bolsonaristas legalistas, mas sempre bolsonaristas.

Diante de um confronto iminente, concordamos em efetuar as prisões dos golpistas apenas no dia seguinte. Vendo hoje, seis meses depois, acho que foi o certo a fazer. Se fosse diferente, seria perigoso para as pessoas e talvez pior ainda para a democracia. Imagina a PM de um lado e o Exército do outro… Meu pai era deputado estadual quando foi cassado em 64, depois do golpe militar. Isso marcou a minha vida. No dia 8 de janeiro, testemunhei uma tentativa de golpe da minha janela. Alguns negacionistas dizem que aquilo foi mera arruaça, coisa de baderneiros. Não foi. No auge da pandemia, quando não tinha mais vaga de hospital no Maranhão para internar os doentes, irado, soquei a parede. Naquele dia não soquei a parede, mas tive vontade de socar certas pessoas.

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GILMAR MENDES: “FELIZMENTE ISSO ACONTECEU EM JANEIRO”
Decano do Supremo Tribunal Federal, que chorou ao ver os escombros, destaca a forte reação das instituições e diz que o ataque teria desfecho imprevisível caso tivesse ocorrido durante o governo de Jair Bolsonaro

ESTADO DE CHOQUE - Gilmar Mendes: ele estava em Portugal quando recebeu pelo celular as primeiras imagens da invasão
ESTADO DE CHOQUE - Gilmar Mendes: ele estava em Portugal quando recebeu pelo celular as primeiras imagens da invasão (Cristiano Mariz/Agência O Globo/.)

Almoçava com um amigo juiz em Portugal e, por coincidência, falávamos sobre como havia sido relativamente pacífica a transição de governo no Brasil quando recebi pelo celular as primeiras imagens da confusão. Fiquei em choque. Logo lembrei que tinha feito um prognóstico caso Bolsonaro ganhasse as eleições: o conflito com o Supremo Tribunal aumentaria. Pessoas próximas afirmavam que, se ele vencesse, teríamos de deixar o país. Tudo que eu estava falando sobre o sucesso da passagem de poder tinha acabado de ser revogado. Desde as comemorações do Sete de Setembro de 2021 eu temia que algo como aquilo ocorresse. Liguei de imediato para os ministros Flávio Dino, Alexandre de Moraes, e para a presidente Rosa Weber. Todos estavam tentando entender o que estava acontecendo. Flávio me descreveu pari passu a invasão dos prédios, a omissão da polícia e discutimos o que poderia ser feito de imediato. Depois que me apossei da realidade, passei a pensar nos instrumentos que poderiam ser usados para enfrentar aquela situação caótica: estado de defesa, intervenção federal. Quase não dormi naquela noite. As imagens não saíam da minha cabeça. Era a confirmação dos meus maus pressentimentos.

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Consegui antecipar minha passagem. Do aeroporto, fui direto para o tribunal. Difícil descrever a cena com a qual me deparei, embora já tivesse visto pela televisão. In loco, era bem pior. Não resisti — e chorei. A sensação foi de chegar em sua própria casa e vê-­la totalmente destruída. Perambulei pelos andares. Eram só escombros. Os aparelhos quebrados, as obras de arte no chão, as salas alagadas, os móveis queimados. Consegui sentir o nível de animosidade daquelas pessoas. Lembrei de um dia, no início da pandemia, em que o Bolsonaro me falou das dificuldades da campanha, da facada e se pôs convulsivamente a chorar. Fiquei com a impressão de que ele era uma alma torturada. Não sei por que esse encontro me vem agora à memória. O fato é que o presidente era muito dado a teorias conspiratórias. Ele despertou esse sentimento em seus apoiadores. Achava que nós queríamos derrubá-lo. Por quatro anos, as pessoas foram bombardeadas por notícias dessa natureza. Durante o voo de volta, muita coisa passou pela minha cabeça. O país enfrenta uma série de problemas, mas sempre achei que tínhamos maturidade para driblar coisas assim, a despeito de toda a radicalização.

Ainda existem detalhes obscuros nessa história. Tenho a impressão de que a maioria do Alto-Comando das Forças Armadas é legalista, mas não foi por acaso que a polícia de Brasília não fez nada naquele dia. É preciso investigar a fundo e punir quem cometeu crimes. Percebi também que a canalização do ódio contra o tribunal foi muito maior do que com o Planalto e o Congresso. Acho até elogioso porque, pelo menos na cabeça das pessoas que destruíram tudo, isso mostra que fomos o órgão que mais guerreou, mais enfrentou, mais tentou colocar limites a esse poder inabalável. Enquanto caminhava pelos escombros, procurei respostas para duas perguntas: o que fizemos para chegar a esse ponto e o que devemos fazer para evitar que isso não se repita. Nenhum avião cai por causa de um erro só e tivemos uma sucessão consorciada de equívocos. Aliás, cometemos uma série deles desde que deixamos o populismo avançar, o que resultou na eleição de Bolsonaro. Repito: não acreditava e continuo não acreditando que houvesse condições para um golpe. Havia pessoas que alimentavam essa ideia maluca. Felizmente tudo ocorreu em janeiro. Se tivesse sido antes, durante o governo anterior, muito provavelmente teríamos a decretação da Garantia da Lei e da Ordem e, a partir daí, só Deus pode responder.

ARTHUR LIRA: “A DIREITA E O BOLSONARISMO PERDERAM”
O presidente da Câmara avalia que os ataques foram consequência da polarização política que ainda divide o país e defende o aprofundamento das investigações para evitar a consolidação de narrativas falsas

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BOMBARDEIO - Arthur Lira: ele descansava na praia e viu pela TV o momento em que o Congresso foi ocupado
BOMBARDEIO - Arthur Lira: ele descansava na praia e viu pela TV o momento em que o Congresso foi ocupado (Cristiano Mariz/.)

Estava descansando na minha casa de praia, na Barra de São Miguel (AL), naquela tarde de domingo. O telefone, de repente, começou a tocar sem parar. Meus assessores e o pessoal da Polícia Legislativa estavam preocupados com a manifestação, que começava a se deslocar em direção ao Congresso. Telefonei para o governador Ibaneis Rocha, que me garantiu que estava tudo sob controle. ‘Governador, eu não estou vendo a polícia na televisão. Não sei onde ela está’, insisti. Ele reafirmou que estava tudo normal. Minutos depois, entraram no Congresso. A segurança começou a me enviar áudios terríveis: ‘Bum!’, bombas, muito barulho, gente gritando. Não houve como conter a invasão. O Congresso é um prédio todo de vidro. Sem a proteção externa, torna-se totalmente vulnerável. E, como havia advertido ao governador, não vi polícia do lado de fora. Decidi voltar imediatamente a Brasília. Enquanto providenciava o voo, liguei para o presidente Lula e disse que estava voltando. Ele estava nervoso, tinha uma evidente convicção de que um golpe estava em andamento. No início da noite, quando cheguei, os manifestantes já haviam deixado a Esplanada e o rastro de destruição. O problema naquele momento era outro. O presidente culpava o Exército por não ter desmontado o acampamento de onde partiram os manifestantes. Queria que todos fossem imediatamente presos, mas os militares resistiam a cumprir a ordem. Minha percepção é que o governo não tinha o apoio das Forças Armadas nem das Polícias Militares. O clima era tenso. Lula estava revoltado e preocupado com a situação, como todos.

Por volta de 1 hora da manhã, fui ver de perto o resultado da invasão. Era como se o Congresso tivesse sido alvo de um bombardeio. Todos os vidros, todos os móveis da chapelaria, as obras de arte, os documentos — tudo foi destruído. O Salão Verde estava encharcado. O pessoal entrou nos gabinetes, urinou em cima das mesas, danificou equipamentos e ateou fogo nos computadores. Vendo aquilo, você vai sendo tomado por uma miríade de sentimentos que confundem. Funcionários que me acompanhavam choravam. Ficou evidente para mim que as forças policiais se omitiram. A Câmara não foi comunicada sobre eventuais riscos de uma manifestação anunciada com antecedência. Soubemos depois que órgãos do próprio governo tinham alertado sobre os riscos. Os criminosos portavam cassetetes, granadas, armas, bombas caseiras. Ou seja, estavam preparados para atacar e ninguém fez nada. Essas situações precisam ser investigadas, e serão. É para isso que instalamos uma CPI. Ela terá a oportunidade de esclarecer quem praticou esses crimes, quem incentivou e também quem prevaricou.

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Estou no Congresso há doze anos e já vi diversas manifestações, mas nada pode ser comparado ao que houve no 8 de Janeiro. Ainda não tenho uma convicção formada sobre o que de fato aconteceu. Uma coisa eu posso garantir: aquele movimento radical não representa o pensamento médio da direita. Apesar disso, acho que a direita e o bolsonarismo perderam. Uns dizem que a depredação foi guiada por pessoas infiltradas, que nada tinham a ver com o protesto. Outros afirmam que foi uma tentativa de golpe. As narrativas reproduzem a polarização política no país. O que a gente pode afirmar é que houve um movimento organizado de desrespeito à ordem, uma agressão inominável às instituições, uma tentativa de criação de um Estado anárquico. Para um golpe, era preciso apoio bélico, militar, e não acredito que se chegou a esse ponto. Torço e trabalho para que esse episódio seja completamente esclarecido, que passe para a história sem versões de conveniência, com os responsáveis devidamente punidos, para que isso nunca mais se repita.

Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849

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