O que muda no cenário político com a possível inelegibilidade de Bolsonaro
É dado como certo que julgamento no TSE vai tornar o ex-presidente inelegível. Se confirmada, tal decisão provocará reviravolta no jogo eleitoral
No Tribunal Superior Eleitoral (TSE) existe uma jurisprudência informal segundo a qual não é papel do Judiciário retirar do cargo políticos eleitos para o posto de presidente da República. O histórico da Corte está recheado de cassações de prefeitos, deputados e governadores de menor expressão, mas por diferentes razões, inclusive pelo receio de incendiar o país, a Justiça sempre relevou abusos cometidos por mandatários em suas campanhas eleitorais. No episódio mais emblemático, o TSE descartou em 2017 uma avalanche de provas e confissões feitas no âmbito da Operação Lava-Jato contra a chapa de Dilma Rousseff e Michel Temer e livrou a dupla da inelegibilidade. Se Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito, muito provavelmente cada uma das dezesseis ações que apontam ilegalidades cometidas pelo capitão teria o mesmo desfecho. Mas ele foi derrotado, deixando um passivo de quatro anos de confronto com o Judiciário e a suspeita de que por trás dos inúmeros ataques desferidos contra o sistema de votação estaria uma maquinação golpista. O ex-presidente, por conta disso, corre sério risco de ter os direitos políticos suspensos.
O acerto de contas com a Justiça começou na última quinta-feira, 22, no plenário do TSE, onde Bolsonaro está sendo julgado por crime eleitoral, mas o arcabouço capaz de bani-lo por um longo tempo das urnas teve início muito antes, quando ele já se insurgia, sem evidência alguma, contra supostas fraudes nas eleições presidenciais de 2018. Em razão desses ataques, há no tribunal um consenso entre a maioria dos ministros: a presença do capitão em futuras disputas eleitorais representa uma ameaça à democracia. Como não faltam provas de que ele usou o cargo para tentar desqualificar o processo eleitoral, a tendência é que seja condenado e, em consequência, fique impedido de participar de eleições pelos próximos oito anos. O resultado do julgamento deve ser anunciado apenas na próxima semana, mas nem os aliados mais próximos do ex-presidente alimentam esperanças de um veredito que não seja a condenação. Não é exagero afirmar que ele próprio ajudou a construir seu cadafalso.
Bolsonaro sempre colocou em dúvida a confiabilidade das urnas eletrônicas, o que desde sempre foi interpretado como a semente de um discurso visando a desacreditar todo o processo eleitoral. Apenas em 2021, ele questionou a integridade do sistema de votação pelo menos 23 vezes. “Concluímos que só nos restava o enfrentamento”, lembra um ministro do TSE. Na época, já preocupado com o nível das críticas, o presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes, se reuniu com os colegas Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, e Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), para discutir uma estratégia de reação. Decidiram que, naquele momento, um inquérito administrativo era a melhor forma de proteger a Corte contra os ataques. “Foi a partir desse procedimento que começamos a enfrentar os abusos e violações à lei eleitoral, produzindo provas que acabaram por se tornar elementos importantes para o julgamento da inelegibilidade do ex-presidente”, conta o ministro Salomão a VEJA.
Na sequência, o tribunal fixou outros dois entendimentos claramente contrários a Jair Bolsonaro que, somados à investigação, revelaram a disposição dos integrantes da Corte. Com o endosso da dupla Alexandre-Salomão, o TSE consolidou a tese de que divulgar fake news contra o processo eleitoral poderia resultar em cassação e que espalhar desinformação e inverdades usando disparos em massa de mensagens também poderia configurar abuso de poder. No julgamento que começou na quinta-feira, o tribunal está analisando justamente se Jair Bolsonaro cometeu abuso de poder e usou indevidamente os meios de comunicação por ter convocado mais de setenta representantes diplomáticos para, em pleno Palácio da Alvorada e com transmissão da TV estatal, expor teorias conspiratórias sobre imaginárias vulnerabilidades das urnas. A teoria jurídica se uniu à prática. “No passado, quando o TSE analisava temas de abuso de autoridade, na maioria das vezes examinava sobre a ótica de algum ilícito eleitoral com o propósito de influenciar a vontade do eleitor na hora do voto. Neste processo, o que se afirma é a existência de um ilícito que visa primordialmente a atacar o sistema eleitoral com o propósito de retirar a legitimidade das eleições”, explica o ex-ministro Henrique Neves.
Para reforçar o conjunto de provas contra o ex-presidente, o TSE também decidiu levar em conta fatos que indicam que Bolsonaro endossou a escalada da violência política durante as eleições e pavimentou o caminho para que um resultado eleitoral desfavorável a ele não fosse acatado. Por ordem do corregedor-geral eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, a minuta de uma intervenção golpista encontrada por policiais na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres foi incluída no processo, tornando-se mais um forte indício de que o capitão planejou atentar contra as eleições. Os atos de depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, também devem ser considerados pelos juízes na hora de emitir seus votos. Até mesmo os planos golpistas encontrados no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro — revelados na última edição de VEJA — podem de alguma maneira influenciar a decisão (veja a matéria na pág. 32).
O julgamento começou com a leitura do relatório do ministro Benedito Gonçalves, que fez um resumo do processo e classificou como “arco narrativo alarmista” as falas de Bolsonaro sobre fragilidades e fraudes no processo eleitoral. Na sequência, o advogado Walber Agra, que representa o PDT, autor da ação, afirmou que o ex-presidente, ao espraiar inverdades sobre as eleições, tinha “obsessão golpista” e tentava transformar o país “num pária internacional”. O vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, disse que o processo reuniu evidências mais do que suficientes que justificam o seu afastamento. Em nome da defesa de Bolsonaro, o advogado e ex-ministro do TSE Tarcísio Vieira de Carvalho foi o último a se manifestar na sessão de quinta. Ele argumentou que, no limite, ao capitão deveria ser imposta a pena de multa, mas não a suspensão dos direitos políticos por oito anos, e rechaçou a hipótese de o TSE usar o episódio dos embaixadores para promover o julgamento do bolsonarismo. Os ministros começarão a votar a inelegibilidade na terça-feira 27.
A nova composição do TSE é tida como mais um fator adverso ao ex-presidente (veja os quadros). A recente dança de cadeiras no tribunal com a escolha, em maio, de dois novos ministros reforçou ainda mais a convicção entre conselheiros de Bolsonaro de que a inelegibilidade é uma hipótese mais do que provável. Deixaram a Corte os advogados Carlos Horbach, tido como mais alinhado ao bolsonarismo, e Sérgio Banhos. Antes da mudança, desenhava-se um placar apertado. Com a ascensão dos advogados Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares, nomeados por Lula com o aval de Alexandre de Moraes, o escore contra o capitão tende a ser mais elástico. Ciente de que a situação lhe é amplamente desfavorável, a defesa do ex-mandatário quer ganhar tempo e aposta que uma mudança de ares no futuro possa reverter o iminente banimento das urnas. “No estado de direito os fins não justificam os meios. O que está em jogo não é o bolsonarismo nem o embate entre a civilização e a barbárie, como se deixa transparecer, mas uma simples, singela e franciscana reunião com os embaixadores em julho de 2022, muito antes do período eleitoral e sem a gravidade necessária para sustentar uma condenação dessa natureza”, disse a VEJA o advogado Tarcísio Vieira de Carvalho.
Se for derrotado no TSE, Jair Bolsonaro pretende bater às portas ao STF e torcer para que seu recurso seja analisado num momento político diferente e, lógico, mais favorável a ele. Os advogados do ex-presidente acreditam que, se for mesmo declarado inelegível, ele possa se beneficiar no futuro de uma reviravolta jurídica como a que anulou as condenações de Lula na Lava-Jato — uma aposta no imponderável, talvez a única esperança que ainda lhe resta. Recentemente, em uma conversa, Bolsonaro foi perguntado sobre o quanto ele avaliava a possibilidade de ficar inelegível. “Mais de 50%”, respondeu. “Mais se isso acontecer, vai ser um abuso”, ressaltou. O fato é que, apesar das declarações em público, reservadamente nem os aliados mais otimistas do capitão vislumbram alguma chance de absolvição. “O TSE estará errando se condenar o Bolsonaro, se deixar o Bolsonaro inelegível. Nenhuma justificativa tem para exageros no Poder Judiciário”, disse o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, legenda à qual o ex-presidente é filiado.
Com as câmeras desligadas, o próprio Valdemar já traça cenários para o futuro sem Bolsonaro como candidato. Feitas algumas contas, a inelegibilidade nem é necessariamente um mau negócio para o PL. Alguns dirigentes do partido e de outras legendas de centro alegam que, hoje, o ex-presidente seria melhor como cabo eleitoral do que como candidato. Consolidada a condenação, o plano de Valdemar e companhia é vender a ideia de que Bolsonaro foi vítima de uma perseguição política, usá-lo para pedir votos e construir uma candidatura de direita mais moderada e palatável ao grosso do eleitorado. Em entrevista a VEJA no mês passado, o próprio ex-presidente falou sobre o eventual apoio a outro candidato: “Eu quero estar em condições (de disputar). Seja a Presidência, senador, seja deputado federal. Mas, se aparecer um bom nome, eu estou pronto para compor, para conversar. Não estou com essa obsessão de ser presidente não”, disse. A menção a um cargo no Legislativo, aliás, não é à toa. Nos estertores de seu governo, ele flertou com a hipótese de aprovar uma emenda constitucional que garantiria a todos os ex-presidentes um mandato vitalício de senador, com direito a foro privilegiado e blindagem contra investigações diversas. A proposta perdeu tração, mas continua a rondar setores do Congresso que, a depender do rumo dos ventos, podem sacá-la como uma boia de salvação.
No campo da direita, os reflexos imediatos da condenação de Bolsonaro não são tratados necessariamente como negativos. Pelo contrário. Políticos ouvidos por VEJA destacam que a inelegibilidade vai fazer emergir uma liderança que agregará tanto os apoiadores do ex-presidente como também aqueles que no ano passado votaram em Lula apenas porque não gostavam do capitão, reunindo uma maioria teoricamente imbatível em 2026. Na lista de potenciais herdeiros do espólio, estão a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e pelo menos quatro governadores: Tarcísio de Freitas (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais), Ratinho Junior (Paraná) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul). Em tese, todos eles estão torcendo para que o ex-presidente seja absolvido. Em tese. Se confirmado o impedimento, Bolsonaro, na melhor das hipóteses, estará apto a disputar novamente uma eleição presidencial apenas em 2030, quando já terá 75 anos de idade. O julgamento, portanto, pode decretar o fim da carreira de um dos personagens mais controversos da história republicana e o início de uma nova e totalmente imprevisível fase da política brasileira.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847