Cientistas descobrem que o ato de beijar é mais antigo do que se imaginava
Para além do desejo carnal, o gesto e suas variações ganharam, ao longa da história, conotações românticas, cordiais, libertinas, políticas e artísticas
Foram 58 horas, 35 minutos e 58 segundos. De acordo com o Guinness Book, esse foi o maior tempo que um casal já passou se beijando. Travessia exagerada, claro, mas quem nunca se imaginou colado aos lábios da alma gêmea ou de um amor platônico? Para muito além do desejo carnal, o gesto e suas variações ganharam, ao longa da história da humanidade, conotações românticas, cordiais, libertinas, políticas e artísticas. Beijar parece algo tão natural e onipresente que poucos param para pensar como o hábito nasceu ou mesmo se faz parte de todas as culturas. A resposta para todas essas questões — sim, ósculos são como registros da civilização — ganhou agora especial destaque depois de uma dupla de cientistas dar as mãos para investigar documentos ancestrais. Elas descobriram que beijos já eram trocados em sociedades do Oriente Médio há pelo menos 4 500 anos.
A hipótese levantada pelo trabalho do arqueólogo Troels Pank Arbøll e da bióloga Sophie Lund Rasmussen, depois da análise de uma série de escritos de povos da Mesopotâmia (na atual região do Iraque e da Síria), indica que as primeiras carícias labiais remontam a 1 000 anos antes do previamente estabelecido pela comunidade científica. Embora os achados da dupla atestem beijos românticos há mais de quatro milênios, imagine-se que eles tenham brotado muito antes. Há evidências pré-históricas da prática, embora ainda permaneçam obscuras e peçam estudo. Lá nas profundezas das cavernas da pedra lascada, as bocas procuravam umas às outras.
Há uma dificuldade particular na datação dos beijos, de modo a estabelecer um marco zero — os relatos antigos, atrelados a narrativas mitológicas, eram orais e, portanto, acabaram se perdendo. As anotações por escrito abraçavam apenas atos administrativos e burocráticos do cotidiano oficial. A vida privada era tabu. Demorou para que a intimidade se revelasse em textos. “Apesar da escassez de dados, é possível supor que o primeiro beijo tenha antecedido a invenção da escrita”, disse a VEJA Pank Arbøll. Na trilha da fascinante investigação, um modo de puxar o fio da meada foi estabelecer a conexão do selinho — como diríamos hoje em dia — e algo mais, com a saúde das populações. O contato, sabe-se desde sempre, pode ser vetor de transmissão de doenças.
Ora, além da motivação social e sexual em sociedades antigas e modernas, a troca de carinho e saliva pode ter desempenhado um papel decisivo, ainda que não intencional, na proliferação de microrganismos. Uma pesquisa publicada em 2022 constatou que o vírus da herpes, que causa feridas na boca, teria surgido e se espalhado entre bitocas no fim do período neolítico, durante as migrações da Idade do Bronze. Ao longo dos séculos, essas e outras infecções se tornaram biológica e culturalmente indissociáveis dos beijos. Basta se lembrar do fungo Candida albicans, responsável pelos sapinhos, que muitos pais usam para assustar seus filhos beijoqueiros, afoitos por prazer no início da vida amorosa. Lembre-se também do vírus Epstein-Barr, causador da mononucleose, não por acaso conhecida como a “doença do beijo”.
A lista é grande e inclui, naturalmente, os vírus respiratórios, como o agente da Covid-19, que se disseminou no Brasil logo depois do Carnaval e dos beijos suados em meio à folia de três anos atrás, em março de 2020, tempo ainda de tanto riso, tanta alegria, que culminaria na maior crise sanitária de nossa geração. Com a pandemia, pelo menos por um tempo indesejado, os afagos mais quentes foram escanteados e as máscaras tamparam os rostos, por necessidade e zelo, apesar da onda de estúpido negacionismo de muitas autoridades. O estudo de Arbøll e Rasmussen, contudo, busca inocentar, ou ao menos atenuar, as objeções e contraindicações a esse ato tão íntimo a dois. “O fato de o beijo sexual ter sido praticado em grandes regiões geográficas, na Antiguidade, indica que seu efeito na transmissão de doenças foi constante, e não algo que acelerasse repentinamente a disseminação de patógenos”, diz Pank Arbøll. Ótimo, e se subtraia do beijo a culpa pelas mazelas da humanidade.
Ressalve-se que nós, humanos, não somos os pais da ideia. Algo muito próximo ao beijo foi observado em bonobos e chimpanzés, parentes mais próximos do ser humano. Há, portanto, segundo antropólogos e biólogos, evidentes raízes animais. Mas a cultura, condição que nos faz diferentes, é que mudou o rumo da prosa — nem todos prezam o hábito. Em 2015, uma ampla pesquisa, cujo objetivo era entender as diferenças do cultivo a esse gesto entre 168 sociedades, concluiu que os ósculos com fins românticos e sexuais são menos comuns do que sonhamos — apenas 46% dos povos estudados os curtiam, a maioria grupos ocidentais. Em alguns países, mesmo no Ocidente, o beijo de língua é vergonhoso, até mesmo repulsivo. Na Índia, por exemplo, só se beija em privado, dentro de casa.
Todavia, no planeta globalizado em que vivemos, a literatura, a fotografia e o cinema tiveram papel seminal na aceitação simbólica do beijo fora de quatro paredes. “Os filmes, sobretudo os americanos, e as revistas dos anos 1950 e 1960, que mostravam certa liberação feminina, deram imensa contribuição”, diz a historiadora Mary Del Priore, autora de Histórias da Gente Brasileira (Leya). Não demorou para que a atitude virasse manifesto. Um exemplo: em 1991, o Jornal do Movimento Negro Unificado, de São Paulo, publicou uma edição com uma capa ruidosa. Ela trazia a foto de um casal de jovens negros se beijando, acompanhada da frase: “Reaja à violência policial: beije sua preta em praça pública”. Não era a primeira, nem a última, vez que o gesto seria protagonista de lutas. Seja de forma simbólica, como na pintura do Muro de Berlim que reúne os líderes das antigas União Soviética e Alemanha Oriental, seja de forma escancarada ou velada em prol de minorias. Nesse trajeto, existem até registros sintomáticos e bem menos lisonjeiros do ambiente cultural. A clássica imagem de um marinheiro e uma enfermeira se beijando na Times Square de Nova York ao fim da II Guerra Mundial, descobriu-se, é, na verdade, o instante flagrado de um assédio em praça pública — o soldado, meio embriagado, teria surpreendido a moça em meio à comoção nas ruas daquele agosto de 1945.
Não há dúvida: pequenas e grandes revoluções tiveram o direito de amar como temas centrais e, claro, os beijos estiveram na ribalta. Agora mesmo, nas redes sociais, fãs da novela Vai na Fé, da TV Globo, reivindicam a exibição do beijo lésbico entre as personagens Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman), que vem sendo postergado há alguns capítulos. Evento semelhante aconteceu em 2014, quando Mateus Solano e Thiago Fragoso deram o primeiro beijo gay da televisão brasileira em horário nobre, em Amor à Vida. Discretos ou ardentes, os beijos sobreviveram à evolução da espécie humana, ultrapassaram as epidemias e as batalhas políticas. São a costura entre o passado e o presente. Como anotou o poeta e pensador francês Alfred de Musset (1810-1857): “A única linguagem verdadeira no mundo é o beijo”.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844