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Árvore da vida: as promessas da nova fase do Projeto Genoma Humano

Batizada de pangenoma, a iniciativa pretende mostrar uma fotografia mais precisa das diferenças entre as pessoas

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h46 - Publicado em 2 jun 2023, 06h00

A depender da religião, da mitologia ou do conto popular, o símbolo da árvore da vida pode representar a fonte vital, uma energia conectora, ou o próprio ciclo dos seres que habitam esta Terra. Ideia comum em culturas de todo o mundo, cabe perfeitamente como metáfora do DNA, sigla em inglês de ácido desoxirribonucleico, molécula dentro das células que contém a informação genética responsável pelo desenvolvimento e funcionamento de um organismo, além de ser veículo da hereditariedade de uma geração para outra. Desvendada há 22 anos pelo Projeto Genoma Humano, essa dupla sequência de letrinhas em forma helicoidal foi uma revolução em sua época e por muitos anos depois. Mas o progresso da ciência nessa área trouxe avanços que a tornaram obsoleta, por ser incompleta e pouco representativa da diversidade humana. Agora, outro projeto, o Pangenoma, promete preencher as lacunas que existiam, além de mostrar uma fotografia mais ampla das diferenças entre as pessoas.

REPRESENTATIVIDADE - O pangenoma (acima, o símbolo gráfico da inovação) é fruto de um consórcio que reuniu cientistas de dez países. Mais complexa e completa do que o projeto genoma, a nova versão mira a extraordinária diversidade que marca a existência humana
REPRESENTATIVIDADE – O pangenoma (acima, o símbolo gráfico da inovação) é fruto de um consórcio que reuniu cientistas de dez países. Mais complexa e completa do que o projeto genoma, a nova versão mira a extraordinária diversidade que marca a existência humana (./.)

Tudo começou em 2001, quando o Projeto Genoma Humano, um ambicioso esforço de pesquisa destinado a decifrar a composição química de todo o código genético, divulgou uma prévia da sequência fundamental. Em 2003, o consórcio internacional concluiu o trabalho, com cobertura de 92% do objetivo total. As tecnologias para decifrar os 8% faltantes, que escondiam informações sobre processos biológicos relevantes, ainda não existiam na época. Além disso, esse mapa era baseado em amostras de apenas vinte voluntários, sendo que 70% dele vinha de uma única pessoa. Mesmo assim, o resultado tornou-se uma referência — conhecida na comunidade científica pelo código GRCh38 — e tem sido, desde então, a espinha dorsal da genômica humana. Por muito tempo, foi uma ferramenta poderosa. Com o passar dos anos, contudo, mostrou-se limitada por não ser suficientemente ampla e representativa da variedade dos seres humanos, de modo que não abarcava elementos de nomes técnicos complicados como “variantes estruturais” e “alelos alternativos”.

Mais de duas décadas depois, o Consórcio de Referência do Pangenoma Humano, outra iniciativa internacional que reúne cientistas de dez países, veio corrigir esses problemas. O grupo publicou recentemente uma série de artigos na revista Nature descrevendo um novo modelo de sequenciamento do código genético. Mais complexo, é verdade, mas muito mais abrangente. A pesquisa combina material colhido de 47 indivíduos geneticamente diversos para criar uma imagem mais completa da variedade que caracteriza os seres humanos. “Um genoma não representa toda a rica varia­ção que sabemos que pode ser obser­va­da e estudada em todo o mundo”, diz a geneticista americana Karen Miga, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, envolvida no projeto. “O objetivo número 1 do pangenoma humano é tentar ampliar a representação para ser mais inclusivo e mais equitativo no estudo da espécie humana, com uma coleção de referências e não apenas uma.”

MULTIDÃO - Transeuntes em Tóquio: a nova referência inclui dados de 47 pessoas, mas a meta é chegar a 350 indivíduos
MULTIDÃO - Transeuntes em Tóquio: a nova referência inclui dados de 47 pessoas, mas a meta é chegar a 350 indivíduos (Kimimasa Mayama/EFE)
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Além de representar melhor a diversidade humana, o novo pangenoma terá papel vital para a medicina. Para entender isso, vale um pouco de didatismo. Um genoma é o conjunto de instruções de DNA — cuja estrutura molecular foi descoberta pelos americanos James Watson e Francis Crick, em 1953 — que ajuda cada criatura viva a se desenvolver e funcionar. As sequências do código diferem ligeiramente entre os indivíduos. No caso dos humanos, as semelhanças genéticas entre duas pessoas aleatórias alcança 99%. O que as torna singulares — e eis aqui a maravilha da existência — está no 1% restante, que pode fornecer informações sobre a saúde de uma pessoa, ajudando a diagnosticar doenças, prever resultados e orientar tratamentos médicos. Para entender essas diferenças, os cientistas criam um padrão múltiplo. “Todo mundo tem um genoma único, portanto, usar uma só referência pode levar a desigualdades nas análises”, diz Adam Phil­lip­py, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano e coautor do estudo principal. “Por exemplo, prever uma doença genética pode não funcionar tão bem para alguém cujo genoma é muito diferente do que a referência.”

CÓDIGO DA VIDA - Watson (à esq.) e Crick: cientistas que descobriram o formato do DNA em 1953
CÓDIGO DA VIDA - Watson (à esq.) e Crick: cientistas que descobriram o formato do DNA em 1953 (A. Barrington Brown, Gonville And Caius College/SPL/Fotoarena/.)

Outra aplicação da nova abordagem será na farmacogenômica, ramo da farmacologia que estuda a resposta de pacientes a medicamentos e tratamentos de doenças considerando a variação genética entre diferentes indivíduos. Uma mesma droga que pode ser eficaz para uma pessoa talvez seja inócua ou tóxica para outra. Isso depende tanto do genoma do indivíduo quanto da velocidade que seu organismo leva para metabolizar o medicamento. Se um metabolizador rápido precisa de uma dose maior, pode ser que um metabolizador lento exija um caminho oposto, porque o princípio ativo pode se acumular no organismo e se tornar tóxico. “Tudo isso depende do nosso genoma”, diz a VEJA a professora Mayana Zatz, geneticista do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. “É um dos motivos que explicam a importância de saber a composição étnica de cada população e descobrir quais são as drogas adequadas.”

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EVOLUÇÃO HUMANA - Karen Miga, geneticista da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos, e uma das participantes do projeto: as partes do genoma humano que a ciência não estudou durante mais de vinte anos são decisivas para a compreensão do DNA e a investigação de doenças genéticas
EVOLUÇÃO HUMANA – Karen Miga, geneticista da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos, e uma das participantes do projeto: as partes do genoma humano que a ciência não estudou durante mais de vinte anos são decisivas para a compreensão do DNA e a investigação de doenças genéticas (Carolyn Lagattuta/UC Santa Cruz/.)

Os atuais resultados, extraordinários, são apenas um estágio intermediário do projeto. Até meados de 2024, os cientistas pretendem ampliar o espectro com amostras de 350 indivíduos. “Será o início de uma nova área para incorporar de forma mais significativa a diversidade humana nas ciências biológicas”, afirma o geneticista Ting Wang, da Universidade de Washington. O pangenoma também marca o início de um período em que será possível ver com clareza a sequência e a variação genômica das pessoas. “A nova referência mostra que cada um de nós carrega pedaços de DNA que são incomuns ou únicos”, diz o geneticista americano Erik Garrison, da Universidade do Tennessee, envolvido no consórcio internacional. “Estas são partes associadas à função imunológica ou interações ambientais, decisivas para a saúde.”

Uma referência científica que incorpore cidadãos de todas as origens genéticas, como ocorre agora com o pangenoma, sem veio algum de preconceito, significa um salto extraordinário para a civilização. Mais do que isso: espelha a beleza da diversidade humana.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844

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